Texto 1:

Por que rimos? Ninguém sabe. O riso tem uma qualidade universal: todas as culturas têm seus contadores de piadas. E, mesmo que a piada tenha graça só para uma cultura, as pessoas reagem sempre da mesma forma. Não importa se a língua é completamente diferente, se a pessoa é da Mongólia, um aborígene australiano ou um índio tupi, o riso é sempre muito parecido, uma reação física a um estímulo mental.

Marcelo Gleiser. Sobre o riso. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/.

Texto 2:

Para compreender o riso, impõe-se colocá-lo no seu ambiente natural, que é a sociedade; impõe-se sobretudo determinar-lhe a função útil, que é uma função social (...). O riso deve corresponder a certas exigências da vida comum. O riso deve ter uma significação social.

Henri Bergson. O riso.

Texto 3:

Estudado com lupa há séculos, por todas as disciplinas, o riso esconde seu mistério. Alternadamente agressivo, sarcástico, escarnecedor, amigável, sardônico, angélico, tomando as formas da ironia, do humor, do burlesco, do grotesco, ele é multiforme, ambivalente, ambíguo. Pode expressar tanto a alegria pura quanto o triunfo maldoso, o orgulho ou a simpatia. É isso que faz sua riqueza e fascinação ou, às vezes, seu caráter inquietante.

Georges Minois. História do riso e do escárnio.

Texto 4:

Talvez o exemplo mais destacado de artista com um uso constante do sorriso ao longo de sua produção seja Yue Minjun, integrante do chamado Realismo Cínico chinês, que constantemente se autorretrata com sorrisos especial - mente exagerados, quase maníacos. Influenciada pela história da arte oriental em sua representação de Buda e pela publicidade, o que sua risada oculta é, na verdade, uma profunda crítica política e social do país onde vive.

Texto 5:

Rir é um ato de resistência.
Paulo Gustavo, ator.

Considerando as ideias apresentadas nos textos e também outras informações que julgar pertinentes, redija uma dissertação em prosa, na qual você exponha seu ponto de vista sobre o tema: As diferentes faces do riso.

Análise da proposta

A FUVEST seguiu a sua tradição e, em sua prova de redação, requisitou uma dissertação em prosa sobre um tema filosófico de relevância no mundo contemporâneo. Nesta edição, a dissertação deveria tratar do tema “As diferentes faces do riso”.

A coletânea é composta de cinco textos de apoio. O texto 1, do físico e divulgador científico Marcelo Gleiser, trata do caráter universal do riso, que, apesar de diferenças culturais, sempre seria “uma reação física a um estímulo mental”. O texto 2, um trecho do célebre ensaio do filósofo Henri Bergson sobre o tema, enfatiza que o riso deve ter uma função social, deve corresponder a exigências da vida em comum. O texto 3 afirma que o riso é multiforme, ambivalente e ambíguo, tendo formas diversas, o que o faz fascinante e inquietante. O texto 4, composto pela fotografia de uma obra do artista Yue Minjun e por um comentário a ela, trata a representação de um riso exagerado como crítica social, o que pode ser relacionado com uma cultura em que se cria a obrigação de se parecer feliz. No texto 5, a frase “Rir é um ato de resistência”, do ator brasileiro Paulo Gustavo, falecido em 2021, expressa a função social crítica do riso, a qual se fazia presente na obra do artista.

A partir da coletânea, percebe-se que, embora não pareça diretamente ligado à realidade e a fatos cotidianos, o tema permite tratar criticamente de diversos aspectos da sociedade contemporânea, com referência à realidade concreta atual ou não.

Encaminhamentos possíveis

Como alguns outros temas de redação da FUVEST, o desta edição permite abordagens diversas, justamente por seu caráter abrangente. O fato de a frase temática tratar de “diferentes faces” do riso indica, contudo, que era preciso estabelecer relações entre diferentes aspectos do fenômeno. Estes poderiam ser escolhidos a partir da coletânea textual e do repertório pessoal, compondo um todo coeso.

Entre essas diferentes faces que poderiam ser abordadas, é possível destacar as seguintes:

 

O riso como universal

O riso pode estar relacionado a diferentes situações e emoções do ser humano independentemente do seu momento histórico. Apesar de ter conotações distintas em diferentes culturas, rir é um fenômeno humano. Nesse aspecto, era possível estabelecer um diálogo com o texto 1. O riso pode servir, nesse sentido, para criar união ou animar em momentos de tristeza.

Nesse sentido, pode-se citar o filósofo Henri Bergson, para quem não existe humor fora do humano. Somos, segundo o filósofo, não só a espécie que ri, mas a que faz rir. E uma das características do riso, como indica o trecho destacado na coletânea, é que ele deve ter um sentido ou uma função social.

O riso como crítica

O riso tem também a dimensão de crítica social e política. A sátira tem um importante uso crítico, pois, mesmo eventualmente exagerando e simplificando representações, consegue sintetizar, de forma comunicativa, incoerências da sociedade ou de governantes, por exemplo. Essa possibilidade normalmente faz pensar na ideia presente na literatura latina de que, por meio do riso, os costumes são criticados.

Há diversas referências culturais nesse sentido. Na literatura, o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, ou mesmo a prosa de Machado de Assis exemplificam essa possibilidade crítica. No cinema, os exemplos são inúmeros, mas podem-se citar obras como O Grande Ditador, em que Charles Chaplin satiriza Adolf Hitler. Também se pode falar do trabalho de cartunistas e de grupos humorísticos da televisão e da internet. Traços desse fenômeno aparecem mesmo na cultura popular do carnaval, como lembrava uma das questões da prova de português.

O riso e as relações de poder.

Também se pode tratar do riso em meio a debates sobre relações desiguais na sociedade. Por um lado, o riso tem uma face cruel, presente em piadas machistas e homofóbicas, por exemplo. Isso porque ele expressa, nesse caso, um senso de superioridade e indiferença por parte de quem ri e, de alguma forma, de desumanização de quem é objeto do riso. Nesse sentido, era possível comentar que toda uma indústria do chamado “politicamente incorreto” tem se movimentado em torno da reafirmação dessa possibilidade como essência do humor

Por outro lado, o riso pode ser visto como elemento de resistência, quando é usado, inclusive por grupos culturalmente estigmatizados, para criticar ou a opressão ou as pessoas que a realizam ou a reforçam. É o que também afirma o humorista brasileiro Paulo Gustavo na coletânea textual.

Essas discussões sobre o riso também se relacionam a um debate sobre liberdade de expressão. Se, por um lado, a agressão e o preconceito podem indicar a existência de limites morais e legais ao humor, por outro, a reação ao humor crítico pode redundar em violência, como ocorreu no atentado contra a publicação Charlie Hebdo, na França, ou as agressões sofridas por humoristas do programa Porta dos Fundos, no Brasil – em ambos os casos, por obras que criticavam aspectos de grandes religiões.

Riso como conformação ou obrigação

O texto 4, em especial, faz pensar no riso quase como uma expressão obrigatória na sociedade contemporânea, em meio a pressões para a exibição de uma vida feliz e perfeita nas redes sociais. Nesse sentido, em vez de crítico e libertador, o riso pode se tornar mecânico e pouco autônomo.

Assim, pode-se pensar na relação entre riso, diversão e alienação. Os filósofos Adorno e Horkheimer, por exemplo, ao tratar da indústria cultural, afirmam que “sorrir é estar de acordo”, relacionando o riso e o lazer contemporâneos a um instrumento de alienação e bloqueio à emancipação humana.