Quem ficava mais vezes de castigo era ele, Miguilim; mas quem apanhava mais era a Chica. A Chica tinha malgênio — todos diziam. Ela aprontava birra, encapelava no chão, capeteava; mordia as pessoas, não tinha respeito nem do pai. Mas o pai não devia de dizer que um dia punha ele Miguilim de castigo pior, amarrado em árvore, na beirada do mato. Fizessem isso, ele morria da estrangulação do medo? Do mato de cima do morro, vinha onça. Como o pai podia imaginar judiação, querer amarrar um menino no escuro do mato? Só o pai de Joãozinho mais Maria, na estória, o pai e a mãe levaram eles dois, para desnortear no meio da mata, em distantes, porque não tinham de-comer para dar a eles. Miguilim sofria tanta pena, por Joãozinho mais Maria, que voltava a vontade de chorar.

João Guimarães Rosa, Campo Geral.

A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota.

A anedota, pela etimologia e para a finalidade, requer fechado ineditismo. Uma anedota é como um fósforo: riscado, deflagrada, foi-se a serventia. Mas sirva talvez ainda a outro emprego a já usada, qual mão de indução ou por exemplo instrumento de análise, nos tratos da poesia e da transcendência. Nem será sem razão que a palavra “graça” guarde os sentidos de gracejo, de dom sobrenatural e de atrativo.

João Guimarães Rosa. “Aletria e hernenêutica”, Tutaméia.

a) Por que Miguilim, ao recordar as personagens do conto de fadas, se comove tanto e tem vontade de chorar?

b) Considerando as ideias do autor em torno das palavras história, História e anedota, pode-se dizer que Campo Geral é uma estória? Desenvolva a sua resposta com base na leitura da obra.

a) A comoção causada pelo conto de fadas pode ser explicada pela própria personalidade de Miguilim, menino de sensibilidade exacerbada. Tal comoção é acentuada pelo enredo da fábula de João e Maria, abandonados na mata pelos pais. Miguilim se identifica com a narrativa, na medida em que se sente distante do pai, homem bruto, com mais capacidade de manifestar sua agressividade que seu afeto. Assim, Miguilim vai além do enredo e capta a essência da fábula, que trata do abandono e da solidão, condições a que ele associa sua própria vida no Mutum, notadamente no que diz respeito à relação com o pai.

b) Sim. A narrativa de Campo Geral pode ser classificada como estória, nos termos apresentados pelo trecho de “Aletria e hermenêutica”. Segundo o trecho, a oposição entre estória e História é completa: “A estória, em rigor, deve ser contra a História”. Isto é: enquanto a História trata do acontecido, a estória trata do inventado. Em Campo Geral, essa invenção ocorre tanto no plano macro da narrativa, isto é, ela própria é uma ficção, quanto no micro, com alguns elementos que remetem a causos, a invenções: as fábulas contadas por Siarlinda, que tratavam “da Moça e da Bicha-Fera, do Papagaio Dourado que era um Príncipe, do Rei dos Peixes, da Gata Borralheira, do Rei do Mato”; aquelas que o próprio Miguilim cria; ou, ainda, as que são contadas (ou cantadas) por Seu Aristeu. Além dessa relação entre estória e História, o trecho retirado de Tutaméia se refere às semelhanças entre estória e anedota. Um dos traços da anedota, segundo o texto, é o “fechado ineditismo”; isso se verifica em Campo Geral no inusitado das estórias que Miguilim começa a criar, uma das quais giraria em torno de sua cadelinha de estimação. O funcionamento da anedota como “instrumento de análise” também se verifica na narrativa, a partir da visão reflexiva e introspectiva do protagonista. Os “tratos da poesia e da transcendência” apontados no trecho também surgem em Campo Geral: a “poesia” surge tanto na linguagem poética do narrador, sempre próximo da perspectiva do protagonista, quanto na própria forma de Miguilim ver o mundo; e a “transcendência” é representada sobretudo pela personagem de Dito, irmão de Miguilim, que se comporta como uma alma em vias de atingir um plano metafísico. Por fim, os vários sentidos da palavra “graça” também são representados em Campo Geral, na medida em que a visão ingênua de Miguilim abre espaço para o humor (“gracejo”), sua intuição e a relação com Dito apontam para a transcendência (“dom sobrenatural”) e seu talento de contador de causos ainda em semente prenunciam a capacidade de envolver o público (“atrativo”).