O que me espanta não é a traição que dá na vista, não é o tolice que brilho em público: é a decência que se mantém, é a dignidade que se preserva, é a honradez que se resguarda, é o sacrifício obscuro e cotidiano que se continua. Eu lhe digo, porque tenho vivido em muitos cantos do Brasil e mexido com muita gente — eu posso lhe dizer que, entre milhares de homens tão diferentes de caráter e mesmo de ideias, sempre se tem conservado, através de todas as tribulações e contingências, um patrimônio comum. E você, Graciliano Ramos, faz parte deste nosso patrimônio.
O que senti vontade de lhe dizer hoje, e fica dito agora, é o seguinte: que tanto quanto eu, há milhares de pessoas no Brasil que não estão presentes ao banquete mas que desejam que você fique sabendo que estão ao seu lado. Conte conosco, não apenas na hora de beber e de comer, como também na hora de ter ódio de Julião Tavares, de lutar contra Julião Tavares — e de matar Julião Tavares.
Rubem Braga — “Discurso de um ausente’, mensagem do cronista a
seu amigo Graciliano Ramos por ocasião do jantar em homenagem
aos cinquenta anos do autor de Angústia.
a) Como os valores éticos descritos por Rubem Braga constituem a resistência (e logo a tensão) que forma o ponto de vista em Angústia?
b) Caracterize o perfil de Julião Tavares, de modo a explicar por que o cronista o considera um inimigo do “patrimônio comum”.
a) O texto de Rubem Braga aponta para alguns valores éticos: “a decência que se mantém”, “a dignidade que se preserva”, “a honradez que se resguarda”. Esses valores ajudam a compor a personalidade do protagonista de Angústia, Luís da Silva, cujo ponto de vista é destacado por sua condição de narrador. Sua autoimagem é composta a partir de tensões que se sobrepõem. De um lado, há a tensão que se estabelece entre Luís e Julião Tavares, o antagonista, aquele que é alvo de seu ódio e de seu despeito e que sintetiza os valores que ele busca combater. De outro lado, há a tensão interna de Luís da Silva, que vive o drama de questionar muito de sua própria personalidade: mantém um emprego decente, mas que ele mesmo considera medíocre; tenta preservar a dignidade intelectual, mas duvida da própria capacidade (colocando-se como autor de discursos assinados por outros e de romances que nunca se concretizam) e de toda a classe de escritores (cuja atividade ele associa a uma espécie de prostituição); esforça-se por resguardar sua honra, respeitando os limites impostos por Marina na aproximação física, mas não consegue evitar os próprios desejos e nem a fúria de seu ódio individual e de classe contra Julião. Essa fúria o levará ao momento máximo da tensão na obra: a adoção da solução violenta do homicídio, como forma de equacionar seus dramas íntimos e sua própria sensação de inferioridade.
b) Em Angústia, Julião Tavares funciona como metonímia de um comportamento de classe elitista e prepotente. Julgando-se salvaguardado pelo status social e pela condição de moço rico, Julião manifesta desprezo pelo outro, como por Luís da Silva, a quem trata com fingida condescendência e amizade, ou por Marina, a quem seduz e abandona. Julião e sua família são caracterizados como exploradores, comerciantes que, com práticas abusivas, roubavam os bens alheios, comportando-se como os ratos que invadiam a dispensa de Luís da Silva. Em seu texto, Rubem Braga condena esse comportamento, a que se opõe, segundo ele, o de “milhares de pessoas no Brasil”, que, movidas por valores como a “decência”, a “dignidade”, a “honradez” e o “sacrifício obscuro e cotidiano”, constituiriam o “patrimônio comum”, conjunto de valores morais que resistiriam ao avanço da opressão representada por Julião Tavares.