Seus primeiros anos de detento foram difíceis; aos poucos entendeu como o sistema funciona. Apanhou dezenas de vezes, teve o crânio esmagado, o maxilar deslocado, braços e pernas quebrados; por fim, um dia ficou lesionado da perna quando foi jogado da laje de um  pavilhão. Nem todas as vezes ele soube por que apanhou, muito menos da última, quando foi deixado para morrer, mas sobreviveu. Seu corpo, moído no inferno, aguarda o fim dos seus dias. Já não questiona mais. Obedece. Cumpre as ordens. Baixa a cabeça e se retira. Apanha, às vezes com motivo, às vezes sem. Por onde passou, derramaram seu sangue. Seu rastro pode ser seguido. Intriga ter sobrevivido durante tantos anos. Pouquíssimos chegaram à terceira idade encarcerados.

MAIA, A. P. Assim na terra como embaixo da terra. Rio de Janeiro: Record, 2017.

A narrativa concentra sua força expressiva no manejo de recursos formais e numa representação ficcional que

  • a

    buscam perpetuar visões do senso comum.

  • b

    trazem à tona atitudes de um estado de exceção.

  • c

    promovem a interlocução com grupos silenciados.

  • d

    inspiram o sentimento de justiça por meio da empatia.

  • e

    recorrem ao absurdo como forma de traduzir a realidade.

A alternativa B, apontada pelo ENEM como a correta, apresenta na seleção lexical uma falha que torna difícil aceitá-la. O termo “estado de exceção” configura uma situação juridicamente prevista e normatizada em que determinadas garantias individuais são suspensas para que o poder público possa enfrentar crises extremas que ameacem a própria ordem institucional democrática e os direitos e a segurança dos cidadãos. Por paradoxal que pareça, essa suspensão – que tem de ser autorizada pelo parlamento e ter curta duração já prevista em lei – visa em última instância garantir o Estado de Direito ameaçado. Entre as medidas possíveis de serem aplicadas encontram-se a censura, a proibição de reuniões, a suspensão do habeas corpus. Não há, contudo, a previsão de que a humilhação, a sevícia ou a tortura possam ser aplicadas, ainda que para a obtenção de depoimentos ou de confissão, que dirá gratuitamente.

Nem o argumento de que o estado de exceção, mesmo não prevendo tais truculências, acaba por ensejá-las como um efeito colateral indesejado, permite que se assinale a B, pois essas arbitrariedades podem ocorrer mesmo em estados em condição de normalidade democrática - fato deplorável, mas que rotineiramente é noticiado como tendo ocorrido mesmo em países com tradição de respeito aos direitos humanos.

Além do problema conceitual, há outro de interpretação da narrativa. Pelo fragmento fornecido, não se pode afirmar que as violências sofridas pelo detento tenham sido praticadas legalmente por agentes carcerários. Estes podem tê-las cometido à revelia das garantias previstas pelo regimento carcerário, ou mesmo terem sido exercidas por um poder paralelo, como o PCC nas prisões paulistas, contando ou não com a conivência ilegal dos agentes penitenciários.

Portanto, o que foi chamado de estado de exceção se aparenta mais coerentemente com um “estado de barbárie”, em que indivíduos – representantes ou não do poder público - infringem impunemente a lei para dar vazão a atos covardes e desumanos, seja pela obtenção de alguma vantagem, seja pelo puro prazer sádico.

Entre as demais alternativas, a D poderia pacificamente ser assinalada, pois a força expressiva da narrativa se encontra na possibilidade de sensibilizar o leitor, despertando-lhe a indignação contra o cruel e aviltante tratamento e, consequentemente, a empatia pela vítima e o desejo de que a justiça prevaleça e os responsáveis sejam punidos. Este é, aliás, um mote comum em narrativas que tematizam o sistema prisional.

Diante disso, o curso Anglo, respeitosamente, diverge do gabarito oficial.