TEXTO I

Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma coisa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. […] Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene.

ASSIS, M. Um homem célebre. Disponível em: www.biblio.com.br.
Acesso em: 2 jun. 2019.

TEXTO II

Um homem célebre expõe o suplício do músico popular que busca atingir a sublimidade da obra-prima clássica, e com ela a galeria dos imortais, mas que é traído por uma disposição interior incontrolável que o empurra implacavelmente na direção oposta. Pestana, célebre nos saraus, salões, bailes e ruas do Rio de Janeiro por suas composições irreversivelmente dançantes, esconde-se dos rumores à sua volta num quarto povoado de ícones da grande música europeia, mergulha nas sonatas do classicismo vienense, prepara-se para o supremo salto criativo e, quando dá por si, é o autor de mais uma inelutável e saltitante polca.

WISNIK, J. M. Machado maxixe: o caso Pestana. Teresa: revista de literatura brasileira,
2004 (adaptado).

O conto de Machado de Assis faz uma referência velada ao maxixe, gênero musical inicialmente associado à escravidão e à mestiçagem. No Texto II, o conflito do personagem em compor obras do gênero é representativo da

  • a

    pouca complexidade musical das composições ajustadas ao gosto do grande público.

  • b

    prevalência de referências musicais africanas no imaginário da população brasileira.

  • c

    incipiente atribuição de prestígio social a músicas instrumentais feitas para a dança.

  • d

    tensa relação entre o erudito e o popular na constituição da música brasileira.

  • e

    importância atribuída à música clássica na sociedade brasileira do século XIX.

Pestana, personagem do conto machadiano, dedica-se com paixão à música, buscando compor uma obra de arte à altura de grandes realizações eruditas. No entanto, seu pendor para a composição de obras populares deixa-o angustiado. Essa distância entre o desejo íntimo e a prática representa, no conto, as relações de incompatibilidade entre as dimensões popular e erudita da arte musical.