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Para responder à questão, leia o trecho inicial da crônica “Está aberta a sessão do júri”, de Graciliano Ramos, publicada originalmente em 1943.

O Dr. França, Juiz de Direito numa cidadezinha sertaneja, andava em meio século, tinha gravidade imensa, verbo escasso, bigodes, colarinhos, sapatos e ideias de pontas muito finas. Vestia-se ordinariamente de preto, exigia que todos na justiça procedessem da mesma forma – e chegou a mandar retirar-se do Tribunal um jurado inconveniente, de roupa clara, ordenar-lhe que voltasse razoável e fúnebre, para não prejudicar a decência do veredicto.

Não via, não sorria. Quando parava numa esquina, as cavaqueiras dos vadios gelavam. Ao afastar-se, mexia as pernas matematicamente, os passos mediam setenta centímetros, exatos, apesar de barrocas1 e degraus. A espinha não se curvava, embora descesse ladeiras, as mãos e os braços executavam os movimentos indispensáveis, as duas rugas horizontais da testa não se aprofundavam nem se desfaziam.

Na sua biblioteca digna e sábia, volumes bojudos, tratados majestosos, severos na encadernação negra semelhante à do proprietário, empertigavam-se – e nenhum ousava deitar-se, inclinar-se, quebrar o alinhamento rigoroso.

Dr. França levantava-se às sete horas e recolhia-se à meia-noite, fizesse frio ou calor, almoçava ao meio-dia e jantava às cinco, ouvia missa aos domingos, comungava de seis em seis meses, pagava o aluguel da casa no dia 30 ou no dia 31, entendia-se com a mulher, parcimonioso, na linguagem usada nas sentenças, linguagem arrevesada e arcaica das ordenações. Nunca julgou oportuno modificar esses hábitos salutares.

Não amou nem odiou. Contudo exaltou a virtude, emanação das existências calmas, e condenou o crime, infeliz consequência da paixão.

Se atentássemos nas palavras emitidas por via oral, poderíamos afirmar que o Dr. França não pensava. Vistos os autos, etc., perceberíamos entretanto que ele pensava com alguma frequência. Apenas o pensamento de Dr. França não seguia a marcha dos pensamentos comuns. Operava, se não nos enganamos, deste modo: “considerando isto, considerando isso, considerando aquilo, considerando ainda mais isto, considerando porém aquilo, concluo.” Tudo se formulava em obediência às regras – e era impossível qualquer desvio.

Dr. França possuía um espírito, sem dúvida, espírito redigido com circunlóquios, dividido em capítulos, títulos, artigos e parágrafos. E o que se distanciava desses parágrafos, artigos, títulos e capítulos não o comovia, porque Dr. França está livre dos tormentos da imaginação.

(Graciliano Ramos. Viventes das Alagoas, 1976.)

1barroca: monte de terra ou de barro.



O cronista recorre à personificação no seguinte trecho:

  • a

    “Na sua biblioteca digna e sábia, volumes bojudos, tratados majestosos, severos na encadernação negra semelhante à do proprietário, empertigavam-se – e nenhum ousava deitar-se, inclinar-se, quebrar o alinhamento rigoroso.” (3º parágrafo)

  • b

    “A espinha não se curvava, embora descesse ladeiras, as mãos e os braços executavam os movimentos indispensáveis, as duas rugas horizontais da testa não se aprofundavam nem se desfaziam.” (2º parágrafo)

  • c

    “Ao afastar-se, mexia as pernas matematicamente, os passos mediam setenta centímetros, exatos, apesar de barrocas e degraus.” (2° parágrafo)

  • d

    “E o que se distanciava desses parágrafos, artigos, títulos e capítulos não o comovia, porque Dr. França está livre dos tormentos da imaginação.” (7º parágrafo)

  • e

    “Vestia-se ordinariamente de preto, exigia que todos na justiça procedessem da mesma forma – e chegou a mandar retirar-se do Tribunal um jurado inconveniente, de roupa clara, ordenar-lhe que voltasse razoável e fúnebre, para não prejudicar a decência do veredicto.” (1º parágrafo)

A personificação ocorre quando o cronista atribui traços humanos a sua biblioteca (“digna e sábia”) e a seus livros (“nenhum ousava deitar-se [...]”).