“(...) Eram boas cinco horas da tarde quando desembarcamos no Terreiro do Paço. Assim terminou a minha viagem a Santarém; e assim termina este livro.
Tenho visto alguma coisa do mundo, e apontado alguma coisa do que vi. De todas quantas viagens porém fiz, as que mais me interessaram sempre foram as viagens na minha terra.
Se assim pensares, leitor benévolo, quem sabe? pode ser que eu tome outra vez o bordão de romeiro, e vá peregrinando por esse Portugal fora, em busca de histórias para te contar.
Nos caminhos de ferro dos barões é que eu juro não andar.
Escusada é a jura, porém.
Se as estradas fossem de papel, fá-las-iam, não digo que não.
Mas de metal!
Que tenha o governo juízo, que as faça de pedra, que pode, e viajaremos com muito prazer e com muita utilidade e proveito na nossa boa terra.”
(Almeida Garret, Viagens na Minha Terra. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2012, p. 316.)
a) Considerando a crítica ao contexto histórico e político de Portugal, o que significam as referências às possíveis estradas de papel, de metal e de pedra?
b) Utilizando elementos do enredo, identifique e descreva o personagem do romance que centraliza a crítica à hipocrisia ideológica e política de Portugal, expressa no excerto acima de maneira irônica.
a) O contexto histórico da primeira metade do século XIX em que é concebida a obra de Almeida Garrett, Viagens na minha terra, permite que se compreenda a posição crítica adotada pelo autor português no tocante aos rumos políticos e administrativos que a nação lusa estava tomando. Evidentemente decepcionado com o atraso português não superado, muito aquém das melhorias que a industrialização traria após a efetivação da Revolução Liberal, Garrett faz uso da metáfora das estradas como forma de ilustrar seu ponto de vista sobre o momento vivido por Portugal. O papel, como símbolo da literatura e da construção ideal, é endossado, uma vez que representa a empreitada do próprio fazer que o livro significava, ou seja, a escrita da história segundo demandava a identidade nacional. O metal, como imagem da industrialização falhada e individualista dos algozes (“os barões”) dessa fase da história portuguesa, é recusado, visto que não reconhece a essência lusitana, sendo positiva apenas aos donos do poder. Por fim, a pedra, marca do passado glorioso português, é o caminho que Garrett vê como possível, pois reconhece e valoriza aquilo que, de fato, é um elemento fundamental para o reconhecimento daquela identidade de Portugal.
b) A figura de Carlos, na narrativa ficcional, representa claramente a crítica à hipocrisia ideológica e política de Portugal. Na sequência do romance, ele vai primeiramente lutar contra o conservadorismo, mas acabará tornando-se um barão. Assim, ele acaba se corrompendo e acomodando-se com aquilo que consegue após a Revolução Liberal que se efetivou em terras portuguesas.