Leia o soneto abaixo, de Luís de Camões:

“Cá nesta Babilônia, donde mana
matéria a quanto mal o mundo cria;
cá donde o puro Amor não tem valia,
que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

cá, onde o mal se afina e o bem se dana,
e pode mais que a honra a tirania;
cá, onde a errada e cega Monarquia
cuida que um nome vão a desengana;

cá, neste labirinto, onde a nobreza,
com esforço e saber pedindo vão
às portas da cobiça e da vileza;

cá neste escuro caos de confusão,
cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!”

(Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000164.pdf. Acessado em 08/09/2015.)

a) Uma oposição espacial configura o tema e o significado desse poema de Camões. Identifique essa oposição, indicando o seu significado para o conjunto dos versos.

b) Identifique nos tercetos duas expressões que contemplam a noção de desconcerto, fundamental para a compreensão do tema do soneto e da lírica camoniana.

a) A oposição entre os dois espaços presentes no poema é demarcada pelas posições polares que nele ocupam “Babilônia”, no primeiro verso, e “Sião”, no último. A imagem de Sião, espaço que desperta as saudades do poeta, é construída por contraste com tudo o que se diz de Babilônia. Esta é concebida de forma depreciativa: trata-se de um lugar onde “mana” (isto é, produz) “quanto mal o mundo cria”, onde “o mal se afina e o bem se dana” e “pode mais que a honra a tirania”. Assim, é possível associar Babilônia ao Mal e, por contraste, Sião ao Bem. As referências à Monarquia (verso 7) e à nobreza (verso 9) permitem uma leitura contextualizada historicamente, de acordo com a qual Babilônia seria o Oriente, espaço onde ocorriam desmandos cometidos pelos representantes do Império português, cuja capital, Lisboa, seria Sião – local onde a presença do monarca supostamente impediria tais desmandos. Por fim, é ainda possível fazer uma leitura a partir de parâmetros filosóficos, segundo a qual Babilônia seria o mundo material (o mundo sensível de Platão), do qual o ser humano teria que se libertar para atingir a plenitude do mundo espiritual (o mundo inteligível platônico). Nesse sentido, as saudades de que fala o poeta corresponderiam às reminiscências da alma humana, que manifesta uma irresistível tendência ao aperfeiçoamento, isto é, ao retorno ao mundo inteligível, de onde se origina.

b) Na obra lírica camoniana, o desconcerto do mundo corresponde à falta de harmonia de um mundo desorganizado. No soneto transcrito, as imagens do “labirinto” (primeiro terceto) e de “caos e confusão” (segundo terceto) podem ser tomadas como síntese da temática do desconcerto. O “labirinto” supõe um espaço tortuoso, cujos caminhos são mascarados pela inconstância das coisas do mundo. A ideia de “caos e confusão” sintetiza o exato oposto do universo racionalizado, desejado por artistas do Renascimento. Assim, o tema do desconcerto do mundo está presente neste soneto, reforçando a angústia existencial do poeta, perdido na confusão em que está e sem encontrar o caminho de volta para casa.