UTOPIA (de ou-topia, lugar inexistente ou, segundo outra leitura, de eu-topia, lugar feliz).

Thomas More deu esse nome a uma espécie de romance filosófico (1516), no qual relatava as condições de vida em uma ilha imaginária denominada Utopia: nela, teriam sido abolidas a propriedade privada e a intolerância religiosa, entre outros fatores capazes de gerar desarmonia social. Depois disso, esse termo passou a designar não só qualquer texto semelhante, tanto anterior como posterior (como a República de Platão ou a Cidade do Sol de Campanella), mas também qualquer ideal político, social ou religioso que projete uma nova sociedade, feliz e harmônica, diversa da existente. Em sentido negativo, o termo passou também a ser usado para designar projeto de natureza irrealizável, quimera, fantasia.

Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia. Adaptado.

A utopia nos distancia da realidade presente, ela nos torna capazes de não mais perceber essa realidade como natural, obrigatória e inescapável. Porém, mais importante ainda, a utopia nos propõe novas realidades possíveis. Ela é a expressão de todas as potencialidades de um grupo que se encontram recalcadas pela ordem vigente.

Paul Ricoeur. Adaptado.

A desaparição da utopia ocasiona um estado de coisas estático, em que o próprio homem se transforma em coisa. Iríamos, então, nos defrontar com o maior paradoxo imaginável: o do homem que, tendo alcançado o mais alto grau de domínio racional da existência, se vê deixado sem nenhum ideal, tornando-se um mero produto de impulsos. O homem iria perder, com o abandono das utopias, a vontade de construir a história e, também, a capacidade de compreendê-la.

Karl Mannheim. Adaptado.

Acredito que se pode viver sem utopias. Acho até que é melhor, porque as utopias são ao mesmo tempo ineficazes e perigosas. Ineficazes quando permanecem como sonhos; perigosas quando se quer realizá-las.

André Comte-Sponville. Adaptado.

CIDADE PREVISTA

(...)

Irmãos, cantai esse mundo
que não verei, mas virá
um dia, dentro em mil anos,
talvez mais... não tenho pressa.
Um mundo enfim ordenado,
uma pátria sem fronteiras,
sem leis e regulamentos,
uma terra sem bandeiras,
sem igrejas nem quartéis,
sem dor, sem febre, sem ouro,
um jeito só de viver,
mas nesse jeito a variedade,
a multiplicidade toda
que há dentro de cada um.
Uma cidade sem portas,
de casas sem armadilha,
um país de riso e glória
como nunca houve nenhum.
Este país não é meu
nem vosso ainda, poetas.
Mas ele será um dia
o país de todo homem.

Carlos Drummond de Andrade

A utopia não é apenas um gentil projeto difícil de se realizar, como quer uma definição simplista. Mas se nós tomarmos a palavra a sério, na sua verdadeira definição, que é aquela dos grandes textos fundadores, em particular a Utopia de Thomas More, o denominador comum das utopias é seu desejo de construir aqui e agora uma sociedade perfeita, uma cidade ideal, criada sob medida para o novo homem e a seu serviço. Um paraíso terrestre que se traduzirá por uma reconciliação geral: reconciliação dos homens com a natureza e dos homens entre si. Portanto, a utopia é a desaparição das diferenças, do conflito e do acaso: é, assim, um mundo todo fluido – o que supõe um controle total das coisas, dos seres, da natureza e da história.

Desse modo, a utopia, quando se quer realizá-la, torna-se necessariamente totalitária, mortal e até genocida. No fundo, só a utopia pode suscitar esses horrores, porque apenas um empreendimento que tem por objetivo a perfeição absoluta, o acesso do homem a um estado superior quase divino, poderia se permitir o emprego de meios tão terríveis para alcançar seus fins. Para a utopia, trata-se de produzir a unidade pela violência, em nome de um ideal tão superior que justifica os piores abusos e o esquecimento da moral reconhecida.

Frédéric Rouvillois. Adaptado.

O conjunto de excertos acima contém um verbete, que traz uma definição de utopia, seguido de outros cinco textos que apresentam diferentes reflexões sobre o mesmo assunto. Considerando as ideias neles contidas, além de outras informações que você julgue pertinentes, redija uma dissertação em prosa, na qual você exponha o seu ponto de vista sobre o tema - As utopias: indispensáveis, inúteis ou nocivas?

Análise da Proposta

A Fuvest solicitou aos candidatos uma dissertação em prosa que respondesse à seguinte questão: “As utopias: indispensáveis, inúteis ou nocivas?”. A coletânea textual, composta predominantemente de textos temáticos, apresentava um panorama de leituras possíveis do assunto dentro do recorte proposto.
O verbete informa a origem do termo “utopia” e suas ampliações de sentido. O excerto do filósofo Paul Ricoeur ressalta que a utopia é importante por propor novas realidades. O trecho do sociólogo Karl Mannheim trata das consequências nocivas do desaparecimento da utopia, como a perda de ideais e da vontade de construir a história. Já os textos adaptados do filósofo André Comte-Sponville e do escritor Frédéric Rouvillois destacam o caráter nocivo das utopias, quer por sua ineficácia, quer pelo perigo de se tornarem totalitárias, justificando abusos humanitários. O poema de Drummond ilustra a esperança de um futuro de libertação, figurativizado numa “cidade prevista”, que “será um dia o país de todo homem”.
 

Encaminhamentos possíveis

Considerando as três alternativas apresentadas no tema, o candidato deveria sustentar um posicionamento claro, o que não o impedia de dialogar com contradiscursos por meio de ressalvas. A análise poderia considerar, entre outros, os seguintes encaminhamentos:

  • Para defender que as utopias são indispensáveis, seria possível argumentar que elas são capazes de explorar as possibilidades de emancipação de cada tempo e de questionar e ultrapassar a ordem vigente. Ainda que nunca se realizem inteiramente, as esperanças utópicas propiciam conquistas. Por exemplo, a ideia do passe livre para o transporte público pode ser considerada utópica e irrealizável, porém a concepção foi importante para obter a redução das passagens em várias cidades. Ao mesmo tempo, sem as utopias, o homem perde o protagonismo na história e sua própria humanidade. No mundo atual, classificado às vezes como pós-utópico desde a queda do muro de Berlim, isso se evidencia, por exemplo, na indiferença, na naturalização de injustiças e na coisificação do homem;
  • Caso o candidato optasse por sustentar que as utopias são inúteis, poderia defender que, quando se mantêm apenas no plano dos sonhos e das ideias, elas podem não contribuir para transformar a realidade. O próprio termo “utópico” adquiriu uma conotação pejorativa para designar projetos irrealizáveis e fantasiosos;
  • Se preferisse argumentar em favor da tese de que as utopias são nocivas, o candidato poderia recorrer a alguns exemplos. No século XX, regimes totalitários usaram a justificativa de um futuro utópico para controlar sociedades e cometer abusos (foi o caso do stalinismo na União Soviética, responsável por diversas atrocidades). No Brasil contemporâneo, o fanatismo religioso desrespeita a diversidade de crenças e é vendido por lideranças como um projeto utópico para seus fiéis.