Omolu espalhara a bexiga na cidade. Era uma vingança contra a cidade dos ricos. Mas os ricos tinham a vacina, que sabia Omolu de vacinas? Era um pobre deus das florestas d’África. Um deus dos negros pobres. Que podia saber de vacinas? Então a bexiga desceu e assolou o povo de Omolu. Tudo que Omolu pôde fazer foi transformar a bexiga de negra em alastrim, bexiga branca e tola. Assim mesmo morrera negro, morrera pobre. Mas Omolu dizia que não fora o alastrim que matara. Fora o lazareto*. Omolu só queria com o alastrim marcar seus filhinhos negros. O lazareto é que os matava. Mas as macumbas pediam que ele levasse a bexiga da cidade, levasse para os ricos latifundiários do sertão. Eles tinham dinheiro, léguas e léguas de terra, mas não sabiam tampouco da vacina. O Omolu diz que vai pro sertão. E os negros, os ogãs, as filhas e pais de santo cantam:

Ele é mesmo nosso pai

e é quem pode nos ajudar...

Omolu promete ir. Mas para que seus filhos negros não o esqueçam avisa no seu cântico de despedida:

Ora, adeus, ó meus filhinhos,

Qu’eu vou e torno a vortá...

E numa noite que os atabaques batiam nas macumbas, numa noite de mistério da Bahia, Omolu pulou na máquina da Leste Brasileira e foi para o sertão de Juazeiro. A bexiga foi com ele. 

Jorge Amado, Capitães da Areia.

*lazareto: estabelecimento para isolamento sanitário de pessoas atingidas por determinadas doenças.

Costuma-se reconhecer que Capitães da Areia pertence ao assim chamado “romance de 1930”, que registra importantes transformações pelas quais passava o Modernismo no Brasil, à medida que esse movimento se expandia e diversificava. No excerto, considerado no contexto do livro de que faz parte, constitui marca desse pertencimento

  • a

    o experimentalismo estético, de caráter vanguardista, visível no abundante emprego de neologismos.

  • b

    o tratamento preferencial de realidades bem determinadas, com foco nos problemas sociais nelas envolvidos.

  • c

    a utilização do determinismo geográfico e racial, na interpretação dos fatos narrados. 

  • d

    a adoção do primitivismo da “Arte Negra” como modelo formal, à semelhança do que fizera o Cubismo europeu. 

  • e

    o uso de recursos próprios dos textos jornalísticos, em especial, a preferência pelo relato imparcial e objetivo.

No excerto destacado, a vinculação de Capitães da Areia, de Jorge Amado, ao chamado “romance de 1930” é reforçada pelo fato de o romance tratar de uma realidade bem determinada: a epidemia de varíola entre negros e pobres da cidade de Salvador, o que remete especificamente ao caráter social envolvido nesta questão.