Leia o texto para responder à questão.
Nessa mesma noite, leu-lhe o artigo que advertia o partido da conveniência de não ceder às perfídias do poder apoiando em algumas províncias certa gente corrupta e sem valor. Eis que a conclusão:
"Os partidos devem ser unidos e disciplinados. Há quem pretenda (mirabile dictu!*) que essa disciplina e união não podem ir ao ponto de rejeitar os benefícios que caem das mãos dos adversários. Risum teneatis!** Quem pode proferir tal blasfêmia sem que lhe tremam as carnes? Mas suponhamos que assim seja, que a oposição possa, uma ou outra vez, fechar os olhos aos desmandos do governo, à postergação das leis, aos excessos da autoridade, à perversidade e aos sofismas. Quid inde?*** Tais casos - aliás, raros, - só podiam ser admitidos quando favorecessem os elementos bons, não os maus. Cada partido tem os seus díscolos e sicofantas. É interesse dos nosso adversários ver-nos afrouxar, a troco da animação dada à parte corrupta do partido. Esta é a verdade; negá-lo é provocar-nos guerra intestina, isto é, à dilaceração da alma nacional...Mas, não, as ideias não morrem; elas são o lábaro da justiça. Os vendilhões serão expulsos do templo; ficarão os crentes e os puros, os que pôem acima dos interesses mesquinhos, locais e passageiros a vitória indefectível dos princípios. Tudo que não for isto ter-nos-á contra si. Alea jacta est****".
(...)
Rubião aplaudiu o artigo; achava-o excelente. Talvez pouco enérgico. Vendilhões, por exemplo, era bem dito; mas ficava melhor vis vendilhões.
- Vis vendilhões? Há só um inconveniente, ponderou Camacho. É a repetição dos vv. Vis vem... Vis vendilhões; não sente que o som fica desagradável?
- Mas lá em cima há vés vis...
- Vae victis. Mas é uma frase latina. Podemos arranjar outra coisa: vis mercadores.
- Vis mercadores é bom.
- Contudo, mercadores não tem a força de vendilhões.
- Então, por que não deixa vendilhões? Vis vendilhões é forete, ninguém repara no som. Olhe, eu nunca dou por isso. Gosto de energia. Vis vendilhões.
Machado de Assis, Quincas Borba
*"Coisa admirável de dizer." **"Contereis o riso." ***"O que então?" ****"A sorte está lançada."
a) Segundo Camacho, os partidos possuem entre os seus membros "díscolos e sicofantas", isto é, dissidentes e caluniadores. De que modo a retórica do político constitui um artifício para persuadir seu ouvinte quanto aos erros de alguns correligionários?
b) A expressão latina Vae victis! ("Ai dos vencidos!") lembra ao leitor a máxima da filosofia que Quincas Borba apresenta a Rubião no início do romance. Como essas duas frases se contrapõem na trajetória do protagonista?
a) O artigo de Camacho visa a atacar os oposicionistas que romperam a disciplina e a unidade do partido ao aceitar benefícios do governo ao qual se opunham. A orientação retórica estabelece uma distinção moral entre os que se vendem (os maus) e os que se orientam pelos princípios (os bons). Contudo, embora condene os sofismas (raciocínio deliberadamente enganoso), Camacho também constrói um, ao alegar que “desmandos do governo”, “postergação das leis”, “excessos de autoridade”, “perversidade” e “sofismas” só são admissíveis quando favorecem os elementos bons. Todas essas atitudes do governo são condenáveis em si mesmas; caso beneficiassem os que Camacho chama de “bons”, eles deixariam imediatamente de sê-lo, tornando-se corruptos e casuístas.
b) A expressão latina Vae victis! ("Ai dos vencidos!") denota uma atitude de compadecimento diante dos derrotados, enquanto a máxima humanitista “Ao vencedor, as batatas!”, despreza completamente os vencidos, ao considerar apenas as conquistas dos vitoriosos. Essas duas acepções se contrapõem na trajetória de Rubião, na medida em que ele, quando milionário, julgava a máxima do Humanitismo plenamente adequada para sua situação, em que buscava gozar todos os prazeres advindos da fortuna. No final da trajetória de Rubião, quando ele se vê reduzido à miséria e à loucura, o lema de Quincas Borba adquire sentido ainda mais irônico e cruel, visto que o ex-professor foi espoliado e abandonado por todos os que o bajulavam, sendo agora digno de compadecimento.