Texto 1

As descobertas da genética nos apresentam a um só tempo uma promessa e um dilema. A promessa é que em breve seremos capazes de tratar e prevenir uma série de doenças debilitantes. O dilema é que nosso recém-descoberto conhecimento genético também pode permitir a manipulação de nossa própria natureza – para melhorar nossos músculos, nossa memória e nosso humor; para escolher o sexo, a altura e outras características genéticas de nossos filhos; para melhorar nossas capacidades física e cognitiva; para nos tornar “melhores do que a encomenda”. A maioria das pessoas considera inquietantes ao menos algumas das formas de manipulação genética. Entretanto, não é fácil articular nosso mal-estar. Os termos familiares dos discursos moral e político tornam difícil afirmar o que há de errado na reengenharia da nossa natureza.

(Michael J. Sandel [filósofo, professor-visitante na Sorbonne]. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética, 2015.)

Texto 2​

A seleção do sexo do bebê – sexagem – é uma das questões mais controvertidas a que nos expõe o desenvolvimento da biogenética. Divide opiniões e é enganoso pensar que as posições liberais estão do lado dos cientistas, ou ver as posições conservadoras como deriváveis da consciência religiosa. Mesmo os liberais apontam problemas quanto à técnica utilizada na sexagem, devido aos riscos de complicações, desequilíbrio na população de homens e mulheres, discriminação contra a mulher.

Há motivos também de ordem religiosa: a suspeita de que o ser humano, ao assumir o papel de Deus ou da natureza, não produzirá um mundo melhor. Há, certamente, na base da desconfiança, um medo em relação aos desdobramentos desse novo poder: se podemos escolher o sexo, podemos também pensar na liberdade de escolher outras características.

A questão é: até que ponto o poder técnico é também ético? Certamente não devemos condenar a técnica quando ela responde a uma finalidade eticamente defensável. Condena-se a técnica quando a motivação é um mero desejo ou capricho, mas não se condena quando há razões fortes como evitar doenças ou quando a fertilização in vitro é apontada como a única alternativa para a gravidez.

(João Batistiolle [professor de Bioética, PUC-SP]. “Bebês sob medida”. www.cremesp.org.br, 2005.)

Com base nos textos apresentados e em seus próprios conhecimentos, escreva um texto dissertativo-argumentativo, empregando a norma-padrão da língua portuguesa, sobre o tema:

A engenharia genética ameaça a dignidade humana?

A proposta de redação do vestibular da Unifesp de 2021 solicitou que os candidatos elaborassem um texto dissertativo-argumentativo que respondesse ao seguinte questionamento: A engenharia genética ameaça a dignidade humana? Como de praxe nos vestibulares da Vunesp, as discussões giram em torno de um tema contemporâneo, bastante polêmico, enunciado em forma de pergunta.

A coletânea é formada apenas por dois textos verbais. No primeiro deles, apresenta-se, logo no primeiro período, a ideia que vai permear toda a coletânea: o paradoxo que as pesquisas em engenharia genética criam, uma vez que, mesmo pressupondo benefícios futuros para a humanidade em seu caráter preventivo (“uma promessa”), a manipulação genética pode levar a sérios questionamentos morais e éticos (“um dilema”). A mesma “melhoria” pode ser vista sob perspectivas opostas. Um ponto importante a destacar é que, neste primeiro texto, há o “embrião” do cerne da discussão: em que medida nossas opiniões a respeito da reengenharia do ser humano não são influenciadas por valores políticos e éticos estruturados em nossa sociedade, os quais reproduzimos sem reflexão?

O segundo texto conserva a relação paradoxal do primeiro: coloca em oposição a utilidade da engenharia genética e o uso abusivo das técnicas. O acréscimo de informações deste segundo texto está no momento em que se declara ser equivocado pensar que as tendências a defender ou a condenar a técnica estão diretamente ligadas a posições mais conservadoras ou mais liberais, afirmando que o questionamento sobre o uso da engenharia genética vem de todos os lados. Neste texto, o ponto central é a finalidade do uso da técnica: para fins chamados de nobres (“evitar doenças” ou permitir “a reprodução”) ou “indiscutivelmente” éticos, há aceitação; para os que são fruto de “capricho”, ou seja, motivados por uma vaidade humana, não há aceitação.

Encaminhamentos possíveis

Entende-se por “engenharia genética” um conjunto de técnicas de manipulação e recombinação dos genes que se desenvolveram a partir dos anos de 1970. A rigor, suas aplicações têm alcançado diversas áreas, como a medicina, a agricultura e a pecuária, no entanto, a coletânea restringiu a análise ao campo de desenvolvimento humano, em especial, como ameaça à sua “dignidade”. Considerando essa informação, a respeito do recorte temático proposto, seria possível apontar, entre outras possibilidades, os seguintes encaminhamentos argumentativos:

a) A engenharia genética ameaça a dignidade humana? Não

O candidato poderia assumir um posicionamento afirmando que as questões éticas envolvendo a engenharia genética são de responsabilidade de comitês de Bioética — que discutem normas e procedimentos jurídicos, reconhecidos constitucionalmente, a fim de evitar de usos abusivos que atentem contra a preservação da dignidade humana — e que eles já existem em todos os países que fazem pesquisas nessa área. A preocupação com as garantias da pessoa humana, portanto, é uma constante do século XXI, o que levaria o candidato a colocar o foco da questão sobre os avanços das técnicas. Nesse caso, na argumentação, o candidato deveria defender que os benefícios da biogenética — ao contrário do que ditam as vozes do senso comum — vão muito além de questões estéticas ou de escolha do sexo dos filhos: as pesquisas nesse campo se ocupam, primordialmente, em evitar males que abreviem a vida dos indivíduos ou que os impeçam de viver uma vida digna. Conforme avançam, os estudos mostram que a terapia genética poderá, em um futuro próximo, impedir, por meio da manipulação genética, que um indivíduo tenha câncer — e isso poderá se estender a todos os seus descentes; poderá, ainda, evitar defeitos congênitos — que afetam a qualidade de vida dos portadores — como o lábio leporino e até doenças da velhice, como a de Alzheimer.

b) A engenharia genética ameaça a dignidade humana? Sim

Para defender essa ideia, a premissa é determinar o que é, de fato, “dignidade humana”. Considerada um valor fundamental constitucional, a dignidade da pessoa humana ainda é um conceito muito variável. No entanto, o candidato poderia defender que o uso indiscriminado da técnica poderia levar ao desejo de alterações na natureza do indivíduo, com a finalidade de estabelecer padrões (criando crianças “clônicas”, como no romance de Huxley, “Admirável mundo novo”), ou de determinar relações de poder (como em “Gatacca”), o que fere diretamente a dignidade humana. Tais atos poderiam inaugurar uma nova era de eugenia e discriminação, uma vez que a engenharia genética poderia ter como consequência a exclusão de “elementos indesejados” da sociedade a fim de "melhorar" geneticamente a população. Para complementar a argumentação, o candidato poderia destacar que os custos elevados dos procedimentos fazem com que os benefícios da engenharia genética não sejam alcançados pela maior parte da população, em especial em países com grandes desigualdades econômicas, como é o caso do Brasil. Isso contribuiria ainda mais para a exclusão e segregação de indivíduos por sua condição social e econômica, por sua aparência e pelas doenças que têm.

c) A engenharia genética ameaça a dignidade humana? Talvez

Para defender esse posicionamento, o candidato deveria se pautar tanto nas vantagens quanto nas desvantagens da “manipulação de nossa própria natureza”. No entanto, a simples descrição de tais fatos não levaria a um sucesso argumentativo. Para que tal meta fosse alcançada, o candidato precisaria destacar se as vantagens são superiores às desvantagens — ou contrário. Isso significa que, para uma boa elaboração do texto, seria necessário afirmar, por exemplo, que, apesar das conquistas que a engenharia genética proporciona (elencadas em a), a “natureza humana”, como a própria história nos mostra (b), tende a manipular as conquistas para promover a ascensão social, econômica e política de um grupo e a exclusão daqueles que nele não se encaixem.