“A literatura deve, portanto, ser lida e estudada porque oferece um meio de preservar e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão distantes de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida. Ela nos torna sensíveis ao fato de que os outros são muito diversos e que seus valores se distanciam dos nossos.”
(Antoine Compagnon, Literatura para quê? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 46-47.)
“E tudo dela repugnava a Ruth: a estupidez, a humildade, a cor, a forma, o cheiro; mas percebera que também ali havia uma alma e sofrimento, e então, com lágrimas nos olhos, perguntava a Deus, ao grande Pai misericordioso, por que a criara, a ela, tão branca e tão bonita, e fizera com o mesmo sopro aquela carne de trevas, aquele corpo feio da Sancha imunda? Que reparasse aquela injustiça tremenda e alegrasse em felicidade perfeita o coração da negra.
─ Sim, o coração dela deve ser da mesma cor que o meu, cismava Ruth, confusa, com os olhos no altar.”
(Júlia Lopes de Almeida, A falência. Campinas: Editora da Unicamp, 2018, p. 235.)
a) Indique duas palavras do texto de A falência que marcam a tensão entre matéria e espírito. Explique como essa tensão é vivida pela personagem.
b) Relacione as duas últimas frases da passagem do romance com as reflexões de Compagnon, considerando as condições de trabalho na sociedade brasileira ao final do século XIX.
a) No trecho apresentado, algumas palavras remetem ao universo material e, outras, ao espiritual. Assim, temos:
“forma” e “alma” – ambas associadas à personagem de Sancha, em quem Ruth enxerga “a estupidez, a humildade, a cor, a forma, o cheiro”, bem como “uma alma e sofrimento”. A reflexão final de Ruth traz duas palavras que também remetem a esses universos: “coração” (matéria) e “altar” (espírito) – ambas entendidas como metonímias, respectivamente, do corpo humano e da espiritualidade religiosa. Diante dessa tensão, Ruth se sente “confusa”; mas, nesse estado, revela revolta e inconformismo diante das diferenças existentes entre ela própria, branca e rica, e a moça a quem se refere, Sancha, negra e pobre.
b) No trecho final do fragmento transcrito, Ruth, pertencente a uma família abastada, reflete sobre a situação de Sancha, moça negra que trabalhava em uma casa de parentes da primeira, onde sofria maus tratos. Ruth vê em Sancha o outro, o diferente, e, voltando-se para Deus, o “grande Pai misericordioso”, pergunta as razões da desigualdade entre elas. Tais razões estão ligadas às condições estruturais da sociedade brasileira do século XIX, que desvalorizava o trabalho braçal, associado ao elemento escravo. Com isso, o romance A falência expõe os leitores ao dilema da moça branca e à miséria da moça negra, buscando despertar neles a sensibilidade para as condições sociais que provocam as diferenças entre elas.