Você se encontra em uma situação de vulnerabilidade socioeconômica que o deixa mais exposto à infecção pelo vírus da Covid-19 e se sente indignado/a com a negligência do Estado, que não adota medidas sérias e eficazes para evitar que você e outros/as trabalhadores/as corram esse risco. Em um ato de resistência psíquica e política, você decide escrever um diário para registrar o seu testemunho dos acontecimentos extraordinários da pandemia da Covid-19 para que as gerações futuras possam entender como as decisões políticas de um dado momento são determinantes para a história da humanidade.

Escreva um texto de entrada para o seu diário, no qual você deve a) narrar um episódio em que você corre o risco de contrair a Covid-19 em razão de seu trabalho e; b) denunciar, a partir desse episódio, a necropolítica como forma de organização de um Estado negligente em relação à saúde dos mais vulneráveis. Lembre-se de que seu diário servirá de testemunho para que seus descendentes tomem conhecimento do exercício da necropolítica que marcou a pandemia da Covid-19. Para escrever seu texto, leve em conta a coletânea apresentada a seguir.

Diário é um gênero textual, geralmente de caráter íntimo, em que se fazem anotações de experiências pessoais cotidianas, e que é organizado pela data de registro dessas anotações. Alguns diários podem ultrapassar o interesse privado do seu autor e interessar a outros possíveis leitores, seja pela pertinência das reflexões pessoais, seja por documentar uma época histórica.

1. Necropolítica é um conceito desenvolvido pelo filósofo Achille Mbembe que questiona os limites da soberania quando o Estado, baseado em premissas coloniais, racistas e capitalistas, escolhe quem deve viver e quem deve morrer (...). Segundo a pesquisadora Rosane Borges, racismo, capitalismo e necropolítica são inseparáveis. Um sustenta o outro. Aquilo que o capitalismo acha que não serve mais, ele abate, porque são corpos negros. O que se faz com a massa sobrante do mercado de trabalho? O que se faz com o contingente de pessoas que não são absorvidas pelas novas competências técnicas e tecnológicas do capitalismo? Se mata, se exclui. Obviamente que essa mesma massa sobrante são corpos negros, mulheres negras, que foram fundamentais para a acumulação de capital. Corpos que foram escravizados e que hoje não interessam mais para o capital. São pessoas que estão vivendo nas franjas do sistema social, marginalizadas. Nesse processo de marginalização, a gente cria linhas divisórias entre nós e os outros. E esses outros podem ser alvo de tudo. Inclusive da morte. (Adaptado de O que é necropolítica. Disponível em https://ponte.org/o-que-e-necropolitica-e-como-se-aplica-a-seguranca-publica-no-brasil/. Acessado em 15/01/2021.)

2. Quais são as consequências dessa pandemia no que diz respeito à reflexão sobre igualdade, interdependência global e nossas obrigações uns com os outros? O vírus não discrimina. Poderíamos dizer que ele nos trata com igualdade, nos colocando igualmente diante do risco de adoecer, perder alguém próximo e de viver em um mundo marcado por uma ameaça iminente. A desigualdade social e econômica garantirá a discriminação do vírus. O vírus por si só não discrimina, mas nós, humanos, certamente o fazemos, moldados e movidos como somos pelos poderes casados do nacionalismo, do racismo, da xenofobia e do capitalismo. Quais mortes chorar? Parece provável que passaremos a ver um cenário doloroso no qual algumas criaturas humanas afirmam seu direito de viver a custo de outras, reinscrevendo a distinção espúria entre vidas passíveis de luto e aquelas não passíveis de luto, isto é, entre aqueles que devem ser protegidos contra a morte a qualquer custo e aqueles cujas vidas não valeriam o bastante para serem salvaguardadas contra a doença e a morte. (Adaptado de Judith Butler, O capitalismo tem seus limites. Disponível em https://www.redebrasilatual.com.br/blogs/blog-na-rede/2020/03/judith-butler-sobre-a-covid-19-o-capitalismo-tem-seus-limites/. Acessado em 08/09/2020.)

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5. O chefe de governo negou a gravidade do problema, insultou os coveiros, promoveu aglomerações e espalhou desinformação sobre o distanciamento, a higienização e o uso de máscara. Jogou com a vida dos que acreditaram em um remédio inócuo, a cloroquina, e nisso comprometeu o Exército e o SUS. Desmoralizou os médicos Ministros da Saúde, ignorou medidas que inibiriam a evolução da doença e deixou mofar milhões de testes que ajudariam a salvar vidas. Após atribuir poderes políticos às vacinas, o governo federal se dedica agora, negando uma cultura de cem anos, a minar a confiança nelas. Por ele, a pandemia nunca será superada. (Adaptado de Ruy Castro, Os médicos sobre Bolsonaro. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ ruycastro/2020/12/os-medicos-sobre-bolsonaro.shtml. Acessado em 14/12/2020.)

A proposta requer que o candidato se coloque na posição de alguém que vive uma situação de vulnerabilidade socioeconômica relacionada a um risco maior de exposição ao vírus que provoca a Covid-19. Para caracterizar essa personagem ou essa máscara enunciativa, era preciso levar em conta que se sente indignada frente ao que considera uma negligência do Estado que expõe trabalhadores a risco.

Essa seria a motivação para a escrita de uma entrada de diário, ou seja, um registro pessoal que, no caso, é acompanhado de um comentário – texto que a proposta classifica como um “ato de resistência psíquica e política”. Apesar de o diário ser, frequentemente, um gênero cujo interlocutor é o próprio enunciador, aqui a banca pede que se considere que esse testemunho servirá de registro para que futuras gerações compreendam o momento histórico por esse ponto de vista. Importante dizer, nesse sentido, que a interlocução não precisava ser explícita, ou seja, era possível e até mais esperado, considerando o contexto, que isso fosse levado em conta ao se elaborar o texto (por exemplo, tratando de dados atuais que futuramente podem ser esquecidos), mas não com menções explícitas a esse “auditório futuro”.

A coletânea, muito pertinente ao tema e à proposta, traz diversas informações que poderiam contribuir para a redação do texto. O texto 1, de uma reportagem da Ponte Jornalismo, trata do conceito de necropolítica, do filósofo camaronês Achille Mbembe, segundo o qual o Estado moderno é caracterizado pelo poder de matar e deixar morrer, aplicado a parcelas da população que herdariam a exploração do histórico colonial, especialmente com recorte racista (assim, a população negra, por exemplo, é vítima preferencial da violência policial). O texto 2, de um artigo da filósofa estadunidense Judith Butler, chama atenção para os reflexos da pandemia provocada pelo novo coronavírus para a igualdade e a interdependência global, enfatizando o caráter discriminatório da realidade pandêmica, em que apenas alguns poderiam ser passíveis de luto. O texto 3 é uma fotografia que faz pensar em diferentes condições de pessoas durante a pandemia, mostrando um homem negro trabalhando como entregador, enquanto um homem branco faz cooper. O texto 4, um quadrinho do autor Leandro Assis, mostra diferentes situações de trabalhadores em vulnerabilidade. E o texto 5, por fim,  um artigo do escritor Ruy Castro, elenca ações e omissões do governo federal quanto ao combate à pandemia no país.

Encaminhamentos possíveis

Os itens “a” e “b” das instruções desenham, de forma clara, um roteiro possível para o texto. Tratava-se de partir do concreto (a narração de um episódio de risco de contrair a doença) para o abstrato (uma denúncia abordando a necropolítica enquanto forma de organização estatal que se mostra negligente quanto aos mais vulneráveis). O uso da primeira pessoa do singular, principalmente para o item “a”, é esperado e desejável, assim como elementos que caracterizem o tom de denúncia quanto ao item “b”, como exclamações e termos de juízo de valor bastante marcados, como “absurdo” e “revoltante”, por exemplo.

A elaboração do personagem autor do diário poderia levar em conta os textos 3 e 4, que mostram tanto a desigualdade social quanto exemplos de trabalhadores em situação de vulnerabilidade: entregadores e trabalhadores domésticos. Era importante elaborar uma situação que evidenciasse a exposição ao vírus em um contexto em que isso não é uma opção, mas uma imposição das condições sociais. Diante do risco de perder um emprego, sobretudo sem garantias trabalhistas, as pessoas não podem deixar de se expor em alguma medida – o que traz não só exposição à doença, mas forte carga de estresse e comprometimento da saúde mental.

O comentário que denuncia a situação, por sua vez, poderia estabelecer relações com os demais textos. Assim, a vulnerabilidade de uma trabalhadora doméstica negra pode ser relacionada à necropolítica, conceito segundo o qual o Estado de fato mata ou expõe pessoas à morte por critérios raciais. A questão da desigualdade poderia ser reforçada com base nas reflexões do texto 2. Por fim, a negligência do Estado é exemplificada no texto 5.

Essas diversas informações e possibilidade poderiam, naturalmente, ser combinadas a elementos de repertório externo, seja para explicar conceitos, seja para exemplificar omissões estatais. O importante, em todo caso, é que haja uma organicidade, de forma que o comentário em tom de denúncia se relacione de forma coerente à situação narrada.