Você é candidato/a a vereador/a em uma cidade de São Paulo. Em sua campanha, prometeu resolver uma situação polêmica envolvendo a escola pública em que estudou. A escola foi fundada em 1965 e tem em seu pátio duas estátuas de figuras históricas apresentadas como glórias passadas do Estado: um bandeirante, que hoje dá nome a uma rodovia estadual (Anhanguera), e um missionário jesuíta que fundou a cidade de São Paulo (Padre Anchieta). Tais estátuas sempre passaram despercebidas pela maioria dos estudantes. Em 2020, inspirados no movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), que questionou monumentos erguidos em homenagem a colonizadores e escravagistas na Europa, Estados Unidos e África, um grupo de estudantes se mobilizou para pedir a retirada das estátuas do pátio da escola. Outros estudantes se manifestaram contra a possível retirada.

Como ex-aluno/a e candidato/a a vereador/a, você foi convidado/a para discutir o assunto na assembleia estudantil dessa escola. Você então decide preparar um discurso político a ser proferido na assembleia. Em seu texto, você deve: a) fazer um balanço das duas visões em disputa; b) assumir uma posição sobre como agir diante do dilema da retirada ou não das estátuas, argumentando no sentido de convencer os estudantes ali presentes. Lembre-se de que, como líder político, sua posição terá impacto nos encaminhamentos da assembleia. Para escrever seu texto, leve em conta a coletânea apresentada a seguir.

1. Bandeirante: indivíduo que no Brasil colonial tomou parte em bandeira (no sentido de “expedição”); paulista (no sentido de “natural” ou “habitante”); que ou o que abre caminho; desbravador, precursor, pioneiro. (Dicionário Houaiss on-line. Disponível em https://houaiss.uol.com.br/corporativo/apps/uol_www/v5-4/html/index.php#1. Acessado em 28/09/2020.)

2. Os vândalos do bem escolheram o alvo certo. Assim como os intelectuais de ontem, que ergueram estátuas para celebrar as ideias hegemônicas da época, os de hoje estão dispostos a derrubá-las em nome do mesmo princípio covarde. Uma estátua é uma cicatriz da história, uma marca inscrita pelo passado no corpo paisagístico da sociedade. Nas praças, nos parques ou nas ruas, as estátuas alertam-nos sobre o passado - ou melhor, sobre incontáveis camadas de passado. A derrubada desses símbolos revela o desejo tirânico de exterminar a memória social. Uma estátua erguida no passado não representa uma celebração presente de um personagem ou de uma ideologia, mas apenas a prova material de que, um dia, em outra época, isso foi celebrado. (Adaptado de Demétrio Magnoli, Derrubada de estátua é a imposição do esquecimento. Folha de São Paulo, 26/06/2020.)

3.

4. Cidades são locais de memória e temos o direito de atribuirmos novos sentidos a monumentos que outrora esculpimos em pedra. Não se apaga a história, escrita com a caneta dos vencedores. No caso de estátuas, questiona-se quem merece um pedestal público. A escolha não está entre depredar monumentos ou deixá-los intocáveis. Podemos, ao invés disso, ter a maturidade de escolher não elogiar genocidas em nosso espaço público e derrubar monumentos. Civilidade essa que é, aliás, infinitamente superior à das figuras representadas nesses monumentos. Seja para pô-los em museus, para colocá-los em cemitérios de esculturas, para ressignificá-los, quando o valor artístico permite, seja para destruí-los, quando este valor for pífio. (Adaptado de Thiago Amparo, Borba Gato deve cair. Folha de São Paulo, 14/06/2020.)

5. Como todos os missionários do Brasil, Anchieta protegia os índios e benzia a escravidão dos negros. Para ele, o cativeiro dos últimos livrava os primeiros da exploração colonial. Depois, o padre Antônio Vieira completou a justificação jesuítica do tráfico negreiro, afirmando que o escravismo também salvava os africanos do paganismo. Ao fio dos anos, acumulando negócios, os jesuítas se tornaram grandes proprietários de escravos. A fazenda de Santa Cruz, que lhes pertencia, era a maior propriedade escravista das Américas por volta de 1750, concentrando mais de mil cativos negros e mulatos. (Adaptado de Luiz Felipe Alencastro, Santo Anchieta dos poucos. Folha de São Paulo, 20/07/2014.)

6. Os motivos que moviam os bandeirantes eram três. Em primeiro lugar, a riqueza: comerciantes endinheirados organizavam bandeiras para descobrir novas minas e depósitos de ouro, prata e pedras como a esmeralda. Em segundo lugar, a propriedade: fazendeiros financiadores usavam as expedições para ampliar suas terras, aumentando o território para cultivo ou criação de gado. Por fim, a mão de obra: muitas viagens tinham como objetivo recapturar escravos fugitivos ou então encontrar índios que pudessem ser escravizados. (Adaptado de https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-era-uma-expedicao-dos-bandeirantes/. Acessado em 25/09/2020.)

A proposta apresenta uma situação em que o(a) aluno(a) deveria se colocar no lugar de um(a) candidato(a) a vereador(a) em uma cidade de São Paulo que faz um discurso na assembleia estudantil da escola pública a qual frequentou para discutir a presença de duas estátuas (representando Anhanguera e o Padre José de Anchieta) no local. Ainda segundo a banca, a polêmica teria surgido entre alunos após a repercussão do movimento Black Lives Matter, e o candidato(a) a vereador(a), convidado a discursar, teria prometido em sua campanha resolver a situação. Trata-se, portanto, de um tema relevante que dialoga com debates que alcançaram visibilidade no debate público em 2020.

Em relação à organização textual, a banca especifica, nos itens “a” e “b”, os propósitos a que deveria atender a redação: “fazer um balanço das duas visões em disputa” e “assumir uma posição sobre como agir diante do dilema da retirada ou não das estátuas”. Ao mesmo tempo, para desenvolver o gênero discursivo solicitado, era preciso estar atento às características do discurso político: em primeiro lugar, trata-se de um texto produzido para ser ouvido (e não lido) e que, portanto, deve possuir estruturas sintáticas de fácil apreensão.

Em segundo lugar, dada a situação de comunicação apresentada, o texto deveria possuir caráter persuasivo (como evidência sobretudo o item “b”: “argumentando no sentido de convencer os estudantes ali presentes”). Além disso, era esperado que a redação mobilizasse marcas de interlocução e a presença da primeira pessoa do singular, uma vez que seria plausível que o candidato a vereador falasse sobre sua trajetória como estudante da escola onde acontece o discurso.  Nota-se, nesse sentido, que a pessoalidade é uma estratégia persuasiva frequente em discursos políticos.

Em relação à audiência do discurso político apontada pela proposta (estudantes do ensino básico), era esperado que o texto utilizasse linguagem acessível para um público dessa faixa etária, sem, entretanto, ser excessivamente coloquial (dada a posição social de seu locutor).

A coletânea textual, especialmente por se tratar de uma prova da UNICAMP, deveria ser explorada de forma bastante orgânica no texto. A banca apresentou seis textos de apoio de gêneros diversos. O texto 1, uma entrada de dicionário relativa à palavra “bandeirante”, evidencia sentidos presentes no imaginário social sobre esta figura histórica. No texto 2, um artigo de opinião publicado na Folha de S. Paulo, o autor se posiciona contrariamente à militância que defende a remoção de estátuas que expressam valores coloniais e escravagistas. O texto 3, por sua vez, uma tirinha de Alexandre Becker, desloca o sentido de vandalismo da ação de pichar monumentos para caracterizar a atuação dos próprios bandeirantes.

Na sequência da coletânea, os dois textos seguintes correspondem a artigos de opinião publicados em um veículo jornalístico. No texto 4, o autor defende o direito à atribuição de novos sentidos a estátuas que expressam ideologias opressoras, considerando especialmente o significado social do monumento público. Já o texto 5 faz uma crítica dirigida especificamente à postura de legitimação da escravização de negros assumida por parte dos jesuítas durante a colonização brasileira, a exemplo da figura de Anchieta. Finalmente, o texto 6, enquanto parte de um artigo de divulgação científica, descreve as principais motivações dos bandeirantes (riqueza, propriedade e mão de obra).

Encaminhamentos possíveis

Tendo em vista a situação proposta, o tema e a leitura dos textos de apoio, o candidato poderia assumir dois posicionamentos principais:

a) Defender a retirada das estátuas de Anhanguera e José de Anchieta da escola, podendo apontar, dentre outros, os seguintes aspectos:

- Defender o direito à ressignificação de estátuas e monumentos como parte da cidadania, o que pode ocorrer por meio de diferentes estratégias (colocação dessas peças em museus, cemitérios de esculturas ou destruição de sua materialidade, por exemplo), como evidencia o texto 4.

- Apontar os valores coloniais, escravistas e eurocêntricos que são representados, historicamente, pelas figuras de bandeirantes e jesuítas, recorrendo para tanto a informações presentes nos textos 5 e 6.

- Refutar o posicionamento que considera forma de vandalismo a destruição de estátuas como aquelas de bandeirantes e jesuítas, servindo-se, para tanto do raciocínio presente no texto 3.

b) Defender a manutenção das estátuas de Anhanguera e José de Anchieta na escola, podendo apontar, dentre outros, os seguintes aspectos:

- Defender os valores histórico e artístico de esculturas e monumentos, independentemente dos valores que tais peças expressam. Podem-se citar, por exemplo, artistas cuja obra possui inegável valor estético, embora seus autores muitas vezes defendam ideologias passíveis de crítica.

- Apontar a diferença entre celebração de valores ou personagens do passado e a preservação da memória no presente por meio de esculturas e monumentos, que devem ser preservados mesmo quando representam valores não mais em voga nos dias atuais. Para tanto, pode-se dialogar com o texto 2 da coletânea.

- Refutar a defesa de retirada das estátuas, denunciando o caráter intransigente desse tipo de posicionamento, recorrendo, uma vez mais, aos argumentos presentes no texto 2.

Para além dessas duas posições antagônicas, seria possível ainda defender uma perspectiva intermediária. Nesse sentido, uma possibilidade seria problematizar a presença das estátuas na escola e, ao mesmo tempo, defender soluções alternativas à sua remoção, tais como:

- Debates e atividades de conscientização sobre a escravidão e colonização, a partir da conversão forçada de indígenas;

- Produção, pelos próprios alunos, de obras artísticas críticas aos valores exaltados nas estátuas, como forma ressignificá-las;

- Colocação de alguma forma de inscrição, ao lado das estátuas, como forma de se problematizar o tipo de memória que elas exaltam e firmar posicionamentos favoráveis aos direitos humanos.