Pessoal intransferível

Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. Nada no bolso e nas mãos. Sabendo: perigoso, divino, maravilhoso.

Poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena etc. Difícil é não correr com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa. Difícil, pra quem não é poeta, é não trair a sua poesia, que, pensando bem, não é nada, se você está sempre pronto a temer tudo; menos o ridículo de declamar versinhos sorridentes. E sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimônias, “herdeiro” da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando, graças a Deus.

E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusão.

TORQUATO NETO. Melhores poemas de Torquato Neto. São Paulo: Global, 2018.

Expoente da poesia produzida no Brasil na década de 1970 e autor de composições representativas da Tropicália, Torquato Neto mobiliza, nesse texto,

  • a

    gírias e expressões coloquiais para criticar a linguagem adornada da tradição literária então vigente. 

  • b

    intenções satíricas e humorísticas para delinear uma concepção de poesia voltada para a felicidade dos leitores. 

  • c

    frases de efeito e interpelações ao leitor para ironizar as tentativas de adequação do poema ao gosto do público. 

  • d

    recursos da escrita em prosa e noções do senso comum para enfatizar as dificuldades inerentes ao trabalho do poeta. 

  • e

    referências intertextuais e anedóticas para defender a importância de uma atitude destemida ante os riscos da criação poética.

Em seu texto, Torquato Neto defende a postura do risco na criação poética, com afirmações categóricas: “É o risco, é estar sempre a perigo sem medo”; “quem não se arrisca não pode berrar”. Para exemplificar artistas que praticam essa poética do risco, Torquato estabelece relações intertextuais ao referir trechos como “divino, maravilhoso” (que alude a uma canção homônima de Caetano Veloso) e “como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena” (que é uma citação literal do poema “Dois e dois são quatro”, de Ferreira Gullar, e ainda uma alusão à canção “Como dois e dois”, do mesmo Caetano Veloso).