7091991

Para responder à questão, leia o trecho do conto-prefácio “Hipotrélico”, que integra o livro Tutameia, de João Guimarães Rosa.

Há o hipotrélico. O termo é novo, de impesquisada origem e ainda sem definição que lhe apanhe em todas as pétalas o significado. Sabe-se, só, que vem do bom português. Para a prática, tome-se hipotrélico querendo dizer: antipodático, sengraçante imprizido; ou, talvez, vice-dito: indivíduo pedante, importuno agudo, falto de respeito para com a opinião alheia. Sob mais que, tratando-se de palavra inventada, e, como adiante se verá, embirrando o hipotrélico em não tolerar neologismos, começa ele por se negar nominalmente a própria existência.

Somos todos, neste ponto, um tento ou cento hipotrélicos? Salvo o excepto, um neologismo contunde, confunde, quase ofende. Perspica-nos a inércia que soneja em cada canto do espírito, e que se refestela com os bons hábitos estadados. Se é que um não se assuste: saia todo-o-mundo a empinar vocábulos seus, e aonde é que se vai dar com a língua tida e herdada? Assenta-nos bem à modéstia achar que o novo não valerá o velho; ajusta-se à melhor prudência relegar o progresso no passado. [...]

Já outro, contudo, respeitável, é o caso — enfim — de “hipotrélico”, motivo e base desta fábula diversa, e que vem do bom português. O bom português, homem-de-bem e muitíssimo inteligente, mas que, quando ou quando, neologizava, segundo suas necessidades íntimas.

Ora, pois, numa roda, dizia ele, de algum sicrano, terceiro, ausente:

E ele é muito hiputrélico...

Ao que, o indesejável maçante, não se contendo, emitiu o veto:

Olhe, meu amigo, essa palavra não existe.

Parou o bom português, a olhá-lo, seu tanto perplexo:

Como?!... Ora... Pois se eu a estou a dizer?

— É. Mas não existe.

Aí, o bom português, ainda meio enfigadado, mas no tom já feliz de descoberta, e apontando para o outro, peremptório:

— O senhor também é hiputrélico...

E ficou havendo.

(Tutameia, 1979.)



O efeito cômico do texto deriva, sobretudo, da ambiguidade da expressão

  • a

    “homem-de-bem”. 

  • b

    “bom português”. 

  • c

    “indesejável maçante”. 

  • d

    “necessidades íntimas”. 

  • e

    “indivíduo pedante”.

A ambiguidade da expressão “bom português” é responsável pelo efeito cômico do texto, uma vez que pode ser entendida tanto como “um bom uso da língua portuguesa” — no texto, “vem do bom português”, do domínio de suas regras e criações de sentido — quanto de “um bom indivíduo” —  no texto, “homem-de-bem e muitíssimo inteligente”, por vezes criador de neologismos.