Antes de responder à pergunta, leia com atenção os trechos a seguir. O primeiro é de autoria de Machado de Assis, extraído do livro Memórias póstumas de Brás Cubas (1881); o segundo intitula-se “As ideias fora do lugar” (1977) e foi escrito pelo crítico e ensaísta Roberto Schwarz:

“...desembarquei em Lisboa e segui para Coimbra. A Universidade esperava-me com as suas matérias árduas; estudei-as muito mediocramente, e nem por isso perdi o grau de bacharel; deram-mo com a solenidade do estilo, após os anos da lei; uma bela festa que me encheu de orgulho e saudades, – principalmente de saudades. Tinha eu conquistado em Coimbra uma grande nomeada de folião; era um acadêmico estroina, superficial, tumultuário, petulante, dado às aventuras, fazendo romantismo prático e liberalismo teórico, vivendo na pura fé dos olhos pretos e das constituições escritas. No dia em que a Universidade me atestou, em pergaminho, uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro, confesso que me achei de algum modo logrado, ainda que orgulhoso. Explico-me: o diploma era uma carta de alforria; se me dava a liberdade, dava-me a responsabilidade. Guardei-o, deixei as margens do Mondego, e vim por ali fora assaz desconsolado, mas sentindo já uns ímpetos, uma curiosidade, um desejo de acotovelar os outros, de influir, de gozar, de viver, – de prolongar a Universidade pela vida adiante...” (Assis, Memórias póstumas, cap. XX / “Bacharelo-me”)

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“O teste da realidade não parecia importante. É como se a esfera da cultura ocupasse uma função alterada, cujos critérios fossem outros. Por sua mera presença, a escravidão indicava a impropriedade das ideias liberais. Sendo embora a relação produtiva fundamental, a escravidão não era o nexo efetivo da vida ideológica. A chave desta era diversa. Para descrevê-la, é preciso retomar o país como um todo. Esquematizando, é possível dizer que a colonização produziu, com base no monopólio da terra, três classes de população: o latifundiário, o escravo e o “homem livre”, na verdade dependente. Entre os dois primeiros a relação é clara, é a multidão dos terceiros que nos interessa. Nem proprietários nem proletários, seu acesso à vida social e a seus bens depende do favor, indireto ou direto, de um grande. O agregado é a sua caricatura. O favor é, portanto, o mecanismo a partir do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também outra, a dos que têm. Note-se ainda que entre estas duas classes é que irá acontecer a vida ideológica, regida em consequência por este mesmo mecanismo”. (Schwarz, As ideias fora do lugar, In: Ao vencedor as batatas, 2000, p. 15-16)

Tendo por base o repertório da bibliografia selecionada para esta prova – seja de literatura nacional, de língua portuguesa ou de literatura estrangeira –, escolha um único livro e, a partir desse exemplo literário, reflita até que ponto uma obra ficcional é capaz não apenas de expressar a subjetividade individual de um escritor ou a psicologia descarnada de seus personagens, como também de se enraizar nas experiências coletivas vivenciadas por uma dada sociedade e de representar os quadros de um específico período histórico.

A escolha da obra para servir de exemplo à reflexão proposta na prova já é parte importante da resposta. Há na lista fornecida pela FGV alguns livros que, por sua própria natureza, não se encaixam perfeitamente no gênero “obra ficcional” e tampouco apresentam a “psicologia descarnada” de personagens. Um exemplo de obra que não deveria ser escolhida é Claro Enigma, de Carlos Drummond de Andrade, livro de poemas líricos em que não se desenvolve um enredo e que não contém personagens. 

Uma obra como Memórias de um sargento de milícias, por exemplo, de Manuel Antônio de Almeida, está longe de expressar a subjetividade individual de seu autor. Presta-se, ao contrário, a um retrato bem humorado de um país em formação e da convivência entre tipos sociais na época de D. João VI no Brasil. Esse romance de folhetim, publicado em 1854, vale-se das características do suplemento jornalístico que integrava para representar comicamente importantes experiências coletivas da nossa sociedade, por meio de personagens desenhados com traços caricaturais que, em seu comportamento, revelam uma forma de agir atribuída ao brasileiro: a malandragem.

O Cortiço, de Aluísio Azevedo, publicado em 1890, seria uma boa escolha, uma vez que representa um grande grupo social na época do Segundo Reinado que também caracteriza uma importante experiência coletiva,  não atrelada à subjetividade do autor. Romance naturalista, tem na observação da realidade de uma habitação popular e no comportamento esquemático de personagens pouco desenvolvidos psicologicamente a oportunidade de colocar a teoria determinista à prova, estabelecendo relações significativas entre o caráter dos indivíduos e o espaço que ocupam.

Da mesma forma, Vidas Secas, de Graciliano Ramos, publicado em 1938, ao retratar o processo de migração de uma família que foge da seca do Nordeste brasileiro em busca de melhores oportunidades de vida, não revela a subjetividade do autor, mas sua tendência crítica com relação à condição do retirante nordestino submetido à brutal opressão tanto das condições climáticas quanto do proprietário de terra. Neste caso, trata-se de um autor que desenvolve profundamente a psicologia dos personagens e que também reflete sobre a dificuldade de comunicação como decorrência da falta de acesso à cultura letrada.

Há na lista dois exemplos de textos dramáticos: um brasileiro – O-Bem-Amado, de Dias Gomes, publicado em 1962 – e outro alemão – A vida de Galileu Galilei, de Bertold Brecht, escrito entre 1937 e 1938. A peça brasileira apresenta o retrato de uma cidade fictícia no litoral baiano sob a administração corrupta de um prefeito incompetente. As personagens representam tipos muito bem definidos em um cenário marcado pelo coronelismo e criam uma atmosfera cômica na qual o ridículo de seus comportamentos se destaca. No texto de Brecht, a discussão acerca da relação entre ciência e fé também é um exemplo de criação literária que não está relacionada unicamente à subjetividade de seu autor, mas representa uma situação vivida em determinado período histórico e que caracteriza uma visão de mundo específica.

Dentre os livros de literatura estrangeira elencados, Metamorfose, de Franz Kafka, publicado em 1915, é um exemplo de obra que representa a situação da Europa às vésperas da Primeira Guerra Mundial e que, por meio da subjetividade do indivíduo que acorda transformado em um enorme inseto, expressa o sentimento de opressão e inadequação que pertence ao grupo de experiências coletivas vividas em um momento específico da história do homem.