Cultura das transgressões no Brasil

Podemos iniciar falando de uma virtude pública importante, a cortesia.

O que temos hoje da cortesia? Ela perdeu muito de seu peso. Por um lado, isto se deve a valorizarmos hoje mais o espírito do que a regra, o impulso do que a forma, a sinceridade do que as formas externas de respeito. A cortesia é uma expressão exterior de consideração pelo outro e, por isso mesmo, não precisa enunciar um sentimento verdadeiro. Se formos verdadeiros e autênticos em todas as ações de nossa vida social, correremos o risco de torná-la um inferno.

A cortesia não constitui cada pessoa com que cruzamos o olhar ou o andar como interlocutor real ou de fato; mas ela permite que essa pessoa esteja no âmbito daqueles com quem possivelmente cooperaríamos. É a oportunidade aberta pela cortesia que constrói uma rede possível de relações, bem maior em número que as relações atuais, uma rede que nunca se atualizará plenamente porque sempre a possibilidade será bem mais numerosa que a realidade, mas que, por isso mesmo, abre-nos a chance de certa troca entre nossos parceiros atuais e potenciais.

Renato Janine Ribeiro. Cultura das Transgressões no Brasil. Adaptado.

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A nova república das bananas

O Estado autoritário é inevitável numa sociedade de malcriados

Mas para que servem as boas maneiras? Por que não comer com as mãos e arrotar livremente? Esse, aliás, era o clima rebelde no fim dos anos 1960, quando li O Processo civilizador, de Norbert Elias.

Elias quer entender como chegamos até à convivência social moderna, dita “civilizada”. Ele começa mostrando como elaboramos as boas maneiras, que mudaram, aos poucos, nosso comportamento. Por exemplo, paramos de limpar a boca ou assoar o nariz na manga do casaco do vizinho e inventamos guardanapo e lenço. As regras de etiqueta revelam que descobrimos que os outros existem, enxergamos a humanidade de nossos semelhantes.

Esse é o primeiro volume da obra de Elias. O segundo, menos lido, é sobre a formação do Estado moderno, que centraliza o monopólio da violência dita “legítima”

Qual a conexão entre os dois volumes? As boas maneiras são um pressuposto básico do sonho libertário – que se possa viver no respeito do e ao outro, sem nem sequer recorrer ao Estado para administrar a convivência. Inversamente, o Estado autoritário é inevitável numa sociedade de malcriados. A história confirma: governante tosco é sempre seduzido pelo autoritarismo, porque ele não enxerga os outros como seus semelhantes.

Contardo Calligaris, Folha de S.Paulo. 27/02/2020. Adaptado.

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Civilidade

Keith Thomas é um notável historiador de Oxford que analisa o passado com a obsessão e o cuidado de um antropólogo.

O seu tema, desta vez, é a construção da noção moderna de civilidade, termo derivado do latim “civitas”, a comunidade organizada e seus códigos de covivência que, inicialmente, diferenciavam a sociedade romana dos bárbaros, palavra de origem grega que mimetiza a fala incompreensível dos estrangeiros.

Na Inglaterra de séculos atrás, o processo civilizatório justificou a conquista de povos com costumes e hábitos considerados inaceitáveis. Thomas documenta, com a sua erudição inacreditável, a construção da versão moderna de civilidade em que, como apontara Norbert Elias, o comedimento nas paixões políticas e religiosas permite a convivência e o diálogo entre os diferentes, evitando a tragédia das guerras.

A civilidade requer respeito às instituições, permite a criatividade das artes, incentiva a pesquisa nas ciências e tolera a divergência.

Caso morasse no Brasil, Thomas não precisaria recorrer aos registros de tempos passados.

Marcos Lisboa. Folha de S.Paulo. 08/09/2019. Adaptado.

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Incontinência verbal na política.

Inúmeros parlamentares do Reino Unido protestaram contra o Primeiro-ministro Boris Johnson e exigiram que ele pedisse desculpas formais por sua linguagem incendiária e por suas palavras que incitam ao ódio e ao conflito. Para nós, que somos confrontados diariamente com outros exemplos de incontinência ainda mais toscos e pueris, as críticas a Johnson podem parecer exageradas e exigentes em demasia, mas não são, não. Elas nos lembram de que a civilização sempre se pautou por alguns valores simples, tais como a civilidade e o bom senso, antes que o “novo normal”, no qual vale tudo, contaminasse a vida política e o nosso cotidiano.

Marília Fiorillo. Jornal da USP (áudio). Adaptado.

Com o estímulo dos textos acima reproduzidos, acrescido do recurso a outras informações que considerar pertinentes, redija uma dissertação em prosa sobre o tema: A polidez e a civilidade, nas relações sociais e na vida pública, constituem mera formalidade ou são essenciais para a democracia?

Análise da proposta

Como é de sua tradição, a prova de redação da FGV/Direito requisitou dos candidatos a elaboração de uma dissertação argumentativa sobre um tema relevante para a compreensão da sociedade brasileira contemporânea. Nesta edição, o texto deveria responder à questão “A polidez e a civilidade, nas relações sociais e na vida pública, constituem mera formalidade ou são essenciais para a democracia?”.

De construção complexa, o tema exigia a capacidade de perceber a questão central: o papel da civilidade e da polidez para a democracia. Era necessário, por um lado, responder se se trata de formalidade ou de algo essencial e, por outro lado, pensar em como esse tema aparece nas relações sociais e na vida pública.

Para auxiliar na elaboração da redação, a banca apresentou uma coletânea textual bastante pertinente, composta de quatro textos. No primeiro, trecho de uma produção acadêmica, o professor de filosofia da Universidade de São Paulo (USP) Renato Janine Ribeiro observa que a cortesia (uma expressão exterior de consideração pelo outro) é importante para a vida social e envolve ver o outro como alguém com quem cooperaríamos, mas que ela perdeu seu peso hoje. No segundo, o psicanalista Contardo Calligaris, mencionando a obra do sociólogo Norbert Elias, aponta que a etiqueta envolve o reconhecimento da existência do outro e que a ausência dela se relaciona com sociedades autoritárias. No terceiro, o economista Marcos Lisboa, também mencionando Elias, sustenta que a civilidade envolve o comedimento nas paixões e permite o diálogo entre diferentes. No quarto, a professora de comunicação da USP Marília Fiorillo lembra casos de autoridades que empregam linguagem incendiária e defende que haja reação contra essas atitudes, pois a civilização se pauta em valores simples como a civilidade.

Encaminhamentos possíveis

Para elaborar seu texto, o candidato poderia, abordando exemplos de âmbito privado e público, adotar as seguintes linhas de argumentação, entre outras:

Argumentos que sustentam que a polidez e a civilidade são mera formalidade:
- A presença de linguagem polida e civilizada não impediu historicamente a ocorrência de grandes guerras e mesmo de desrespeitos diários a direitos humanos atualmente;
- A polidez excessiva dos políticos é parte dos motivos para um distanciamento entre eles e o seu público, o que indica, portanto, que se trata de algo que pode ser prejudicial à democracia;
- A polidez e a civilidade são, muitas vezes, vistas como hipocrisia, já que, quando surpreendidos por gravações clandestinas, por exemplo, muitos políticos se revelam agressivos e mal educados; percebendo esse caráter falso, a população tende a desacreditar nos discursos.

Argumentos que sustentam que a polidez e a civilidade são essenciais para a democracia:
- Como indica a coletânea, a linguagem polida e a civilidade são alternativas à violência e à guerra, representando um caminho de resolução democrática de problemas;
- A atual falta de polidez e civilidade de lideranças políticas populistas na contemporaneidade (como o primeiro-ministro Boris Johnson, citado no texto) é um recurso demagógico: ao falar e agir de um modo diferente das elites políticas tradicionais, essas novas lideranças querem, na verdade, apresentar-se como alternativas renovadoras a um sistema supostamente podre; logo, são estratégias discursivas manipulatórias, que minam a democracia;
- A polidez e a civilidade constituem esforços na relação de diálogo e entendimento com o outro, o diferente, e, por isso, são essenciais para a convivência democrática, ainda mais em um mundo globalizado e altamente diverso e complexo.