O suplício tem então uma função jurídico‐política. É um cerimonial para reconstituir a soberania lesada por um instante [...]. A execução pública, por rápida e cotidiana que seja, se insere em toda a série dos grandes rituais do poder eclipsado e restaurado (coroação, entrada do rei numa cidade conquistada, submissão dos súditos revoltados). [...]

O suplício não restabelecia a justiça; reativava o poder. No século XVII, e ainda no começo do XVIII, ele não era, com todo o seu teatro de terror, o resíduo ainda não extinto de uma outra época. Suas crueldades, sua ostentação, a violência corporal, o jogo desmesurado de forcas, o cerimonial cuidadoso, enfim, todo o seu aparato se engrenava no funcionamento político da penalidade. [...]

Mas nessa cena de terror o papel do povo é ambíguo. Ele é chamado como espectador: é convocado para assistir às exposições, às confissões públicas; os pelourinhos, as forcas e os cadafalsos são erguidos nas praças públicas ou à beira dos caminhos; os cadáveres dos supliciados muitas vezes são colocados bem em evidência perto do local de seus crimes. As pessoas não só têm que saber, mas também ver com seus próprios olhos. Porque é necessário que tenham medo; mas também porque devem ser testemunhas e garantias da punição, e porque até certo ponto devem tomar parte nela.

Michel Foucault, Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1983.

a) Identifique uma das práticas punitivas descritas no texto empregadas na sociedade colonial brasileira.

b) Explique as relações entre a exibição do poder monárquico e as punições judiciais na sociedade do Antigo Regime europeu.

c) A participação do povo nas execuções conferia a elas um caráter democrático? Justifique.

a) O candidato poderia escolher uma entre as várias práticas punitivas descritas no texto, como o suplício, a forca e o cadafalso e o pelourinho, todas elas empregadas na sociedade colonial brasileira.

b) O texto traz referências à "execução pública" e de como "o suplício não restabelecia a justiça", e sim "reativava o poder". Dessa forma, fica claro que as punições judiciais na sociedade do Antigo Regime buscavam reforçar o poder monárquico perante a sociedade.

c) Não, pois, conforme apontado no texto, o "papel do povo é ambíguo". Por um lado, apenas espectador, ou seja, sem poder para decidir sobre as punições. Por outro, ao assistir a esses eventos públicos, ele se tornava testemunha de alguma forma e reforçava o poder do monarca, que se perpetuava pela imposição do medo.