Você é um(a) escritor(a) que publica uma crônica em uma revista semanal. Sempre se viu como uma pessoa livre de preconceitos e sempre apoiou a igualdade de gêneros. Hoje, porém, ao ler uma matéria no El País, você se deu conta de que, certa vez, vivenciou um episódio em que considerou normal uma das atitudes listadas nessa matéria, as quais, segundo Ianko López, revelam o micromachismo enraizado em nossa sociedade.
Diante da sua tomada de consciência, você decidiu que esse será o tema da sua crônica desta semana. Identificou, então, entre as atitudes listadas (excerto 1) a que corresponde à situação que você vivenciou. Em sua crônica, você deve, tal como fez Chimamanda Ngozi Adichie (excerto 2): a) narrar o episódio vivenciado por você, b) relacioná-lo à atitude micromachista escolhida e c) expor suas reflexões sobre os sentimentos que o reconhecimento dessa atitude despertou em você.
Crônica é um gênero textual que aborda temas do cotidiano. Normalmente é veiculada em jornais e revistas. O cronista trata de situações corriqueiras sob uma ótica particular.
Para redigir o seu texto, leve em conta os excertos apresentados a seguir.
1) As atitudes machistas mais flagrantes são claras para nós. Aquelas que, de forma manifesta e constante, colocam a mulher em uma posição inferior ao homem em contextos sociais, econômicos, jurídicos e familiares. Aquelas que consideram que o homem e a mulher nascem com objetivos e ambições diferentes na vida. No entanto, apesar das reivindicações históricas dos anos 1970 e da crescente conscientização em relação ao machismo em todos os âmbitos culturais e políticos nos últimos anos, há pequenos resquícios que continuam interiorizados em muitos de nós. São sequelas da nossa educação e dos produtos culturais que nos formaram como pessoas e que fazem com que, apesar de criticarmos e denunciarmos o machismo, ainda possamos cair em algumas de suas armadilhas sem perceber. O micromachismo, como vem sendo chamado nos últimos cinco anos, se manifesta em formas de discriminação muito sutis que acontecem todos os dias, até mesmo nos ambientes mais progressistas. Segue uma lista baseada em exemplos que demonstram que talvez tenhamos entendido o grosso das reivindicações feministas, mas ainda precisamos ler as letras miúdas.
1. Achei necessário explicar algo a uma mulher sem que ela me pedisse, pelo simples fato de ser mulher.
2. Comentei com um amigo que ficou cuidando dos filhos: “Hoje te deixaram de babá.”
3. Perguntei a uma mulher se ela estava “naqueles dias” quando me respondeu com indiferença ou desprezo.
4. Disse que “ajudo” nas tarefas do lar, subentendendo que esse é um trabalho da mulher em que eu estou
ajudando, e não participando em condições de igualdade.
5. Em meu trabalho ou entre amigos, só chamo os homens para jogar futebol, pressupondo que as mulheres não
querem jogar.
6. Perguntei a uma mulher quando vai ter filhos, mas nunca perguntei o mesmo a um homem.
7. Pago todos os meus jantares com mulheres acreditando que é o que se espera de mim.
8. Descrevi uma mulher como “pouco feminina”.
9. Usei a palavra “provocante” para descrever a roupa de uma mulher.
10. Comentei que “essas não são formas para uma moça falar.”
11. Na televisão, aprecio homens ácidos e divertidos e mulheres bonitas.
12. Fiz o comentário “Ela é uma mulher forte”, subentendendo que as mulheres, em geral, são fracas.
13. Deixo meu filho adolescente ficar na rua até as 3 da madrugada, mas obrigo minha filha a voltar antes da meianoite.
(Adaptado de Ianko López, Micromachismos: se é homem e faz alguma destas coisas, deve repensar seu comportamento. Disponível em El País. https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/07/politica/ 1520426823_220468.html. Acessado em 28/06/2019.)
2) Quando eu estava no primário, em Nsukka, uma cidade universitária no sudeste da Nigéria, no começo do ano letivo, a professora anunciou que iria dar uma prova e quem tirasse a nota mais alta seria o monitor da classe. Ser monitor era muito importante. Ele podia anotar, diariamente, o nome dos colegas baderneiros, o que por si só já era ter um poder enorme; além disso, ele podia circular pela sala empunhando uma vara, patrulhando a turma do fundão. É claro que o monitor não podia usar a vara. Mas era uma ideia empolgante para uma criança de nove anos, como eu. Eu queria muito ser a monitora da minha classe. E tirei a nota mais alta. Mas, para minha surpresa, a professora disse que o monitor seria um menino. Ela havia se esquecido de esclarecer esse ponto, achou que fosse óbvio. Um garoto tirou a segunda nota mais alta. Ele seria o monitor. O mais interessante é que o menino era uma alma bondosa e doce, que não tinha o menor interesse em vigiar a classe com uma vara. Mas eu era menina e ele, menino, e ele foi escolhido. Nunca me esqueci desse episódio. Se repetimos uma coisa várias vezes, ela se torna normal. Se vemos uma coisa com frequência, ela se torna normal. Se só os meninos são escolhidos como monitores da classe, então em algum momento nós todos vamos achar, mesmo que inconscientemente, que só um menino pode ser o monitor da classe. Se só os homens ocupam cargos de chefia nas empresas, começamos a achar “normal” que esses cargos de chefia só sejam ocupados por homens. Eu tendo a cometer o erro de achar que uma coisa óbvia para mim também é óbvia para todo mundo. Um dia estava conversando com meu querido amigo Louis, que é um homem brilhante e progressista, e ele me disse: “Não entendo quando você diz que as coisas são diferentes e mais difíceis para as mulheres. Talvez fosse verdade no passado, mas não é mais. Hoje as mulheres têm tudo o que querem.” Oi? Como o Louis não enxergava o que para mim era tão óbvio?
Adaptado de Chimamanda Ngozi Adichie. Sejamos todos feministas. Tradução de Christina Baum. São Paulo: Companhia da Letras, 2015, p. 15-17.)
Você deverá escolher apenas UMA das propostas para desenvolver. Não se esqueça de marcar a proposta escolhida na folha de resposta reservada para a Redação.
PROPOSTA 2
A proposta solicita que o candidato se coloque no lugar de um escritor que publica sua crônica em uma revista semanal. Esse indivíduo é caracterizado como alguém “livre de preconceitos”, mas que se deparou com uma matéria jornalística na qual se revelava que certos comportamentos machistas, nomeados como “micromachismos”, estão enraizados na sociedade e que ele, como sujeito pertencente a ela, não estaria livre de reproduzir alguns deles. Decide, então, que o tema da crônica da semana seria a análise de um fato vivido por ele que retratasse esse tipo de intolerância. Vale destacar que tanto o gênero requisitado (crônicas são textos bastante comuns em vários suportes de leitura) quanto a temática são bastante adequados e atuais, como dissemos sobre a proposta 1.
Para organizar o texto, o candidato deveria fazer a leitura dos textos da coletânea. O primeiro deles seria aquele que o cronista teria lido e que o motivara a escrever o texto da semana, o texto intitulado “Micromachismos: se é homem e faz alguma destas coisas, deve repensar seu comportamento”. Nele, Ianko Lopes apresenta sua reflexão sobre atitudes machistas, afirmando que as mais flagrantes – como aquelas que colocam a mulher em posição de inferioridade social, econômica, jurídica e familiar em relação ao homem, ou que limitam ou determinam as escolhas dos indivíduos em função dos gêneros – são claras e mais passíveis de conscientização e de combate. O alerta do autor reside no fato de que as atitudes menos visíveis e mais sutis – classificadas como “micromachismos” – por vezes escapam à nossa percepção, ocorrendo até mesmo em ambientes que são considerados mais progressistas. Na sequência, o autor apresenta uma lista de 13 situações que se aplicam a essa categorização e que deve servir, segundo as instruções da prova, como um guia para que o candidato (assumindo o papel de cronista) determinasse a situação que o tenha levado a escrever a crônica.
O segundo texto, da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi, é uma lembrança de sua infância. Ela teria deixado de ser escolhida como monitor de sala, apesar de ter tirado a maior nota na prova, pelo simples fato de o papel de monitor, normalmente, não ser uma opção do universo feminino dentro daquele contexto em que ela se inseria. A partir desse fato, a escritora desenvolve a tese de que a “normatização” está diretamente relacionada à frequência com que aquela situação se repete: “se repetirmos uma coisa várias vezes, ela se torna ‘normal’”, e exemplifica com situações em que o padrão é criado e não se rompe: “se só meninos são escolhidos como monitores da classe, então (...) nós todos vamos achar (...) que só um menino pode ser monitor da classe”, “Se só os homens ocupam cargos de chefia nas empresas, começamos a achar ‘normal’ que esses cargos de chefia só sejam ocupados por homens”. Por fim, ela destaca o fato de essa reflexão passar despercebida pelas pessoas, mesmo aquelas que lutam pelo fim dos preconceitos e da intolerância.
Encaminhamentos possíveis
Seguindo a instrução da proposta, o ponto de partida seria narrar o episódio escolhido dentre os 13 propostos (item a); relacioná-lo ao conceito micromachista desenvolvido no texto 1 (item b); e, por fim, analisar subjetivamente os fatos (item c). Vemos, portanto, que a Unicamp solicitou que o percurso de raciocínio do texto fosse do concreto ao abstrato, do fato à reflexão, exatamente o mesmo caminho seguido pelo texto 2. Essa ordem deveria ser rigorosamente cumprida.
No entanto, ao estruturar o texto, o candidato poderia exercitar um pouco mais sua liberdade de criação, já que a crônica não obedece a um padrão totalmente fixo. Como descrito na prova, a crônica é um gênero discursivo em que o autor, motivado por um ato/fato do cotidiano, mostra sua visão pessoal, subjetiva. Ao apresentar ao leitor reflexões que, na maior parte das vezes, opõem-se à visão do senso comum, a crônica tem por finalidade levar o interlocutor a perceber certos fatos da realidade para os quais ele nunca se atentou. Isso se encaixa perfeitamente na proposta de produção textual da Unicamp. A possibilidade de escolher uma dentre as 13 situações comuns ao nosso cotidiano descritas no texto 1, certamente, conferiu ainda mais liberdade ao candidato.
As crônicas figuram, basicamente, entre as produções do meio midiático, como jornais e revistas e são produções regulares e em espaços fixos – segundo informações da prova, a crônica seria publicada, especificamente, em uma revista semanal. Dessa forma, é possível supor que os leitores da crônica são “fiéis” e que, portanto, eles devem estar familiarizados aos temas e ao modo de escrita do cronista. Isso permite uma maior fluidez na linguagem, resultando em uma informalidade que preserva os laços entre leitor e escritor, aproximando-os. Por essa mesma razão, a crônica costuma ser escrita em primeira pessoa do singular, havendo a possibilidade de o leitor ser convocado a qualquer momento a participar da narrativa por meio de expressões como “você sabe” ou “caro leitor” ou mesmo por meio da utilização da primeira pessoa do plural, como fez a autora do texto 2 em “Se repetimos ...”. Ainda que as normas do português escrito devam ser cumpridas, nas crônicas são frequentes algumas marcas de oralidade, assim como vemos no texto de Chimamanda o uso recorrente do termo “coisa” ou no trecho “Oi? Como o Louis não enxergava ...”