Resumindo seus pensamentos de vencido, Francisco Teodoro disse alto, num suspiro:

― Trabalhei, trabalhei, trabalhei, e aqui estou como Jó!
(...)
― Como Jó! Repetiu ele furioso, arrancando as barbas e unhando as faces. Não lhe bastava o arrependimento, a dor moral, queria o castigo físico, a maceração da carne, para completa punição da sua inépcia.
Não saber guardar a felicidade, depois de ter sabido adquiri-la, é sinal de loucura. Ele era um doido? Sim, ele era um doido. Tal qual o avô. Riu alto; ele era um doido!

(Júlia Lopes de Almeida, A Falência. Campinas: Editora da Unicamp, 2018, p. 296.)

a) O protagonista de A Falência encarna um tipo representativo da sociedade brasileira do século XIX. Aponte quatro características desse tipo social constatadas na trajetória de Francisco Teodoro.

b) No excerto acima, o narrador se detém no momento em que o protagonista, atormentado, revê sua trajetória e se recorda do avô. Caracterize a voz narrativa nesse excerto e explique seu funcionamento.

 

a) Por “tipo representativo da sociedade brasileira do século XIX”, imagina-se que o enunciado se refira à condição de comerciante estrangeiro de Francisco Teodoro, protagonista do romance. Essa mesma condição aparece em outras obras do período, como O cortiço, com João Romão e Miranda, por exemplo. Mesmo em A falência, temos outras personagens que desenvolvem atividades relacionadas ao comércio do café, como os amigos que se reúnem com frequência no armazém de Francisco: o comissário João Ramos, o ensacador Lemos e o negociante Negreiros. A trajetória do protagonista sugere alguns dos traços mais característicos desse tipo social: o crescimento a partir do esforço pessoal, que o leva a vencer a pobreza dos primeiros tempos; certo desprezo pelos nacionais, o que se percebe no tratamento reservado a um comerciante vizinho, o Gama Torres, tratado pelo protagonista como um “brasileirinho magro” (cap. I); a ambição, cuja desmedida levará Francisco à falência; o desejo de evidenciar a própria riqueza, com recepções sociais fartas e luxuosas; o conservadorismo político, manifesto nas críticas que faz à República (cap. VI); e, por fim, a postura patriarcal, que concebe a figura masculina como chefe de família, remetendo a mulher a uma condição subalterna.

b) O narrador de A falência adota o foco em 3ª pessoa, apresentando uma visão onisciente e se colocando em posição exterior à narrativa (isto é, não é personagem da história). Essa era a postura preferida das convenções realistas, que, com ela, buscavam uma visão mais completa (por ser capaz de desvendar a interioridade das personagens) e distanciada (por ser supostamente objetiva e isenta) do indivíduo e da sociedade. Convém acrescentar que, em seus romances, o maior realista brasileiro, Machado de Assis, trata essa postura com certa ironia, seja adotando o foco narrativo em 1ª pessoa, com uma visão pessoal e subjetiva do mundo (como nas Memórias póstumas de Brás Cubas), seja mostrando um narrador em 3ª pessoa que, por vezes, esquiva-se de dizer toda a verdade dos fatos (Quincas Borba). Em A falência, o narrador diminui o distanciamento e a isenção característicos do narrador em 3ª pessoa, adotando certos procedimentos que denunciam sua posição diante dos temas tratados no romance. Francisco Teodoro, que construiu sua fortuna com trabalho árduo, cede aos apelos da ambição e se volta para a especulação financeira. Essa atividade é tratada com desprezo pelo narrador, de forma explícita: “A especulação, a fraude, a ganância, a traição e a mentira iriam roendo e corrompendo fortunas e caracteres” (cap. XX). Além disso, o personagem que, na trama, personifica a especulação, Inocêncio Braga, é referido frequentemente de forma depreciativa: “espertalhão” (cap. I), “finório” (cap. VII), etc. No trecho reproduzido no enunciado, assim como em outros momentos da obra, o narrador adota o recurso do discurso indireto livre para expressar os pensamentos que ocorrem ao personagem; dessa maneira, apropria-se do julgamento que Francisco Teodoro faz de si mesmo, como a sugerir que concorda com o rigor com que tal julgamento é feito. Esse rigor é evidenciado em outro recurso importante: a escolha vocabular. A opção de Francisco pela especulação constitui a principal razão de ele se considerar “vencido”, e que o leva, agora, a encarar a sua própria “inépcia”. Assim, sem perder a condição de 3ª pessoa, o narrador de A falência explicita ao leitor a lição que deve ser extraída da história que conta.