Análise da Proposta

Conforme sua tradição, a prova de redação do vestibular da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) requisitou dos candidatos a elaboração de um texto dissertativo-argumentativo sobre um tema contemporâneo, enunciado em forma de pergunta. Nesta edição, a redação deveria tratar do tema “Vestimentas religiosas no esporte: legitimação da opressão ou liberdade de manifestação religiosa?”.
A coletânea textual é composta de duas reportagens acerca de um evento específico: a venda, por uma marca de materiais esportivos, de um “hijab” - vestimenta usada por mulheres de cultura islâmica, que pode ter caráter obrigatório em algumas religiões – adequado à prática de esportes. Trata-se da francesa Decathlon, a maior varejista de artigos esportivos do mundo. Devido a fortes reações ao produto, a empresa suspendeu suas vendas.
Ambos os textos trazem opiniões diversas sobre o fato, especialmente no contexto francês. O primeiro texto, da BBC, traz posicionamentos de políticas francesas criticando a marca: a ministra da Solidariedade e da Saúde, Agnès Buzyn, por considerar que a empresa promove uma diferenciação entre os gêneros, e da porta-voz do partido de direita Os Republicanos, por julgar que o produto afronta valores franceses. Além disso, menciona a defesa da marca, que sustentou inicialmente que tinha como objetivo aumentar o acesso ao esporte. O segundo texto, do site Opera Mundi, reproduz uma troca de mensagens entre a marca e a porta-voz do partido Os Republicanos, Lydia Guirous, segundo a qual o lançamento “nega os valores de nossa civilização no altar no mercado do marketing identitário”. Em sua resposta, a Decathlon afirmou que visava atender a uma demanda de praticantes de corrida.

Encaminhamentos possíveis

O posicionamento do candidato, respeitando os requisitos da proposta, deveria pender mais para um dos polos propostos no tema. No entanto, era possível elaborar ressalvas levando em conta aspectos válidos da posição antagônica. Em todo caso, seria possível considerar, entre outros, os seguintes argumentos.

a) Legitimação da opressão

- O uso do hijab é uma prática imposta às mulheres em muitos grupos e regiões, seja por meio de pressões sociais e violência, seja por regimes legais que refletiriam mandamentos religiosos. Assim, ao produzir e vender os produtos, a marca estaria tornando natural e legítima uma forma de opressão contra a mulher;
- O uso do hijab relaciona-se a uma das mais comuns e graves formas de violência contra a mulher, que é o cerceamento da sua liberdade quanto ao próprio corpo, pois tais tipos de vestimenta estão relacionados, em determinados contextos, à propriedade do homem sobre a mulher, que não poderia exibir seu corpo em público;
- Em vez de garantir a inclusão ou o respeito à diversidade, a venda do produto pela empresa, na verdade, atende apenas a interesses comerciais que desconsideram a opressão contra as mulheres, representada pela imposição do hijab, tratando-se, pois, de uma cínica forma de legitimar a injustiça e a violência relacionadas ao gênero.

b) Liberdade de manifestação religiosa

- Conforme defende a fabricante e vendedora de artigos esportivos, a comercialização do hijab promove a inclusão de mulheres que usem esse tipo de acessório, em respeito à sua liberdade de crença e manifestação.
- A visão de que o uso do hijab é uma imposição, embora corresponda à realidade de países como a Arábia Saudita e o Irã, pode ser uma generalização depreciativa em relação ao islamismo, já que há mulheres que o usam como opção individual.
 - Quando se fala em garantia dos Direitos Humanos, tem-se que a religião é uma escolha pessoal e deve ser respeitada. Isso significa que desconsiderar a escolha individual no que tange ao uso de vestimentas religiosas fere os princípios do artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos;
- O linguista Ludwig Wittgenstein defende que “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Ou seja, entender a roupa como uma manifestação da expressão humana significa compreender os limites culturais do próximo. Ao condenar-se, portanto, o uso de vestimentas religiosas nos esportes, cria-se uma barreira frente ao reconhecimento da cultura muçulmana;
- De acordo com o filósofo esloveno Slavoj Zizek, o que se vê na atualidade é que o multiculturalismo possui um limite, ou seja, é comum que uma cultura não tolere o que outra considera normal. Isso fica muito claro nos textos de apoio, a partir da declaração da ministra da França, Agnès Buzyn, ao afirmar que, embora o produto não seja proibido na França, “não é uma visão da mulher da qual eu compartilho”. Apesar de seu posicionamento claramente ir de encontro a uma opressão patriarcal contra as mulheres, sua declaração desconsidera a opinião desse grupo que faz uso do hijab, o que fica evidente ao se constatar que, em momento algum da matéria, houve o pronunciamento de mulheres muçulmanas.