Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade — daremos o mundo o “homem cordial”. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo — ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças. Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinários do convívio social, chega a ponto de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa. Já houve quem notasse este fato significativo, de que as formas exteriores de veneração à divindade, no cerimonial xintoísta, não diferem essencialmente das maneiras sociais de demonstrar respeito.

 Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência — e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no “homem cordial”: é a forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso a polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar intatas sua sensibilidade e suas emoções.

 Por meio de semelhante padronização das formas exteriores da cordialidade, que não precisam ser legítimas para se manifestarem, revela se um decisivo triunfo do espírito sobre a vida. Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social. E, efetivamente, a polidez implica uma presença contínua e soberana do indivíduo.

 No “homem cordial”, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, periférica, que no brasileiro — como bom americano — tende a ser a que mais importa. Ela é antes um viver nos outros.

(O homem cordial, 2012.)

1lhaneza: afabilidade.

Aproxima-se do argumento exposto no último parágrafo do texto a seguinte citação do filósofo Friedrich Nietzsche:

  • A

    “O amor a um único ser é uma barbaridade: pois é praticado às expensas de todos os outros.”

  • B

    “Não há no mundo amor e bondade bastantes para que ainda possamos dá-los a seres imaginários.”

  • C

    “Vosso mau amor por vós mesmos vos faz do isolamento um cativeiro.”

  • D

    “O amor perdoa ao ser amado até o desejo.”

  • E

    “O medo promoveu mais a compreensão geral dos homens que o amor.”

A citação do filósofo expõe como o “mau amor” do indivíduo, dirigido a si mesmo, torna terrível qualquer tipo de isolamento, fazendo da solidão um verdadeiro cativeiro. O texto de Sérgio Buarque de Holanda mostra como o homem cordial usa de sua sociabilidade para se proteger de si mesmo, para livrar-se do pavor de “apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência”.