Texto 1
O mundo enriqueceu-se com uma nova beleza: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com seu cofre enfeitado de grossos tubos, semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugindo é mais belo do que a Vitória da Samotrácia1.
(Filippo Tommaso Marinetti. “Manifesto do Futurismo”. Le Figaro, 20.02.1909. Adaptado.)
1Vitória da Samotrácia: famosa escultura grega, considerada uma obra-prima do período helenístico e datada, aproximadamente, do ano de 190 a.C. Integra o acervo do Museu do Louvre.
Texto 2
Cota Zero
Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?
(Carlos Drummond de Andrade. Alguma poesia, 1930.)
Texto 3
Texto 4
Jaime Lerner, arquiteto e ex-prefeito de Curitiba que priorizou o transporte coletivo na capital paranaense, chamou o carro de “cigarro do futuro”: “Você poderá continuar a usar, mas as pessoas se irritarão por isso.” Depois de décadas em que o modelo curitibano, que privilegia corredores de ônibus, vem sendo copiado no exterior, é ainda lentamente que ganha adeptos no Brasil, com a adoção de corredores e ciclovias e a discussão de limitar, no Plano Diretor de São Paulo, a oferta de vagas de garagem.
O escritor e empresário australiano Ross Dawson tem opinião parecida à de Lerner: “Um dia as pessoas vão olhar para trás e se perguntar como era aceitável poluir tanto, da mesma forma como hoje pensamos sobre o tempo em que cigarro era aceito em restaurantes, aviões e lugares fechados.”
Nos EUA, o carro perde espaço não apenas como meio de locomoção, mas também como objeto de desejo e expressão de um certo modo de vida. Demografia e economia, além da questão ambiental, fazem com que menos jovens tirem carteira de motorista e cidades invistam em sustentabilidade para atrair moradores. 20% dos jovens americanos entre 20 e 24 anos de idade não têm hoje habilitação — e o mesmo vale para 40% dos americanos de 18 anos. Em ambos os casos, o número de jovens que não dirigem dobrou entre 1983 e 2013, segundo estudo da Universidade de Michigan.
(Raul Juste Lores. “O declínio de uma paixão”. Folha de S.Paulo, 29.06.2014. Adaptado.)
Com base nos textos apresentados e em seus próprios conhecimentos, escreva um texto dissertativo-argumentativo, empregando a norma-padrão da língua portuguesa, sobre o tema:
O carro será o novo cigarro?
A prova de redação da UNESP de 2020, em conformidade com sua tradição, apresentou para análise um tema concreto e atual, sintetizado na pergunta: “O carro será o novo cigarro?” – comparação estabelecida pelo arquiteto e ex-prefeito de Curitiba, Jaime Lerner. A coletânea, formada por textos de diferentes gêneros, ofereceu variados subsídios para reflexões a respeito da mudança do valor social atribuído ao automóvel.
Análise da proposta
No texto 1, trecho do Manifesto Futurista, de 1909, Filippo T. Marinetti louva a máquina, a superação das distâncias, o encurtamento delas por meio da velocidade dos automóveis. Para ele, a velocidade é a nova beleza que desponta no início do século XX. O texto cumpre a função de, em meio aos demais da coletânea, esboçar o valor que o automóvel já teve em determinado momento da história, quando seu surgimento prometia um futuro glorioso. Ao afirmar que “um automóvel rugindo é mais belo que a Vitória da Samotrácia”, Marinetti prenuncia a supervalorização do carro nas modernas sociedades.
O texto 2, um poema de Drummond, estabelece uma relação entre a parada do automóvel e a estagnação da vida. Nesse sentido, Stop pode ser interpretado como o comando de trânsito que faz os automóveis interromperem seu movimento. Esse sentido parte do pressuposto de que a vida acontece quando o automóvel está em movimento, de que ele promove uma existência alucinante. A cultura do automóvel, portanto, teria dado novo vigor à vida, imprimindo uma nova forma de viver, atrelada ao consumo. Pode-se entrever, porém, uma visão negativa, de Drummond, associada ao automóvel, que o antevê como um vício, algo que restringe a existência em vez de promovê-la.
O texto 3, uma tira de André Dahmer, põe em evidência uma das consequências mais visíveis da cultura do automóvel: os engarrafamentos, a inviabilização das cidades, a anulação do benefício da velocidade, a ocupação das cidades pelos carros e não pelas pessoas. A elas, segundo a tirinha, restou apenas andar por debaixo da terra, em transportes coletivos mais rápidos que os automóveis. Essa desconcertante conclusão pode levar à reflexão de que os transportes públicos de maior eficiência, como o metrô, agora povoam o imaginário urbano que um dia já foi seduzido pela velocidade e pelo status do automóvel. Além disso, o inchaço das grandes cidades causado pelo trânsito de milhares de veículos poderia ser apontado como o responsável pela mudança de valor que a sociedade atribui ao automóvel.
O texto 4 destaca causas culturais e ambientais da mudança de valor social atribuído ao automóvel. O paralelo que o arquiteto e ex-prefeito de Curitiba faz entre cigarro e automóvel indica, por um lado, que automóveis e cigarros perderam gradativamente seu glamour e, por outro, que a conscientização ambiental tornou condenável a prática de fumar em lugares fechados e um costume em desuso o de tirar carteira de motorista. O texto ainda traça uma crítica às cidades brasileiras que não desenvolveram políticas radicais de valorização dos transportes públicos, como a de Curitiba, importada por vários países.
Encaminhamentos possíveis
A metáfora presente na pergunta-tema “O carro será o novo cigarro?” implica a ideia de redução da utilização desse meio de transporte, uma vez que seria visto como algo nocivo à saúde dos indivíduos e do planeta como um todo. Considerada essa hipótese, o candidato poderia organizar seu texto assumindo um dos possíveis posicionamentos, acompanhados de alguns dos argumentos descritos a seguir:
“O carro será o novo cigarro?” Sim.
- A visão do carro como representação eufórica da velocidade, assim descrita no Manifesto do Futurismo, no início do século XX, já não tem mais espaço nas grandes cidades, em que os congestionamentos se tornaram mais frequentes e os deslocamentos da população ocorrem com mais lentidão.
- Há crescente preocupação com questões ambientais, com impactos na natureza que o excesso de poluição decorrente da utilização de veículos movidos a combustíveis fósseis possa causar.
- Avança, sobretudo nos grandes centros urbanos, a popularização de formas alternativas de transporte, como patinetes e bicicletas.
- Os projetos de investimentos em qualidade e em quantidade dos transportes públicos estão cada vez mais em pauta nos discursos das autoridades públicas e tal preocupação se reflete em novas obras em favor desse tipo de transporte, como corredores de ônibus e metrôs.
“O carro seria o novo cigarro?” Não.
- O aumento da renda média do brasileiro nos últimos anos contribui para manter o carro no topo da lista dos objetos de desejo de consumo.
- Os estímulos fiscais, como a redução de impostos sobre os produtos industrializados, ainda é um grande incentivo à compra de carros.
- Hábitos de consumo são determinados pelo estilo de vida e cultura, e a criação de novos hábitos é um processo que requer lenta mudança de valores.
- Impulsionada a não abrir mão do conforto, segurança e praticidade que o carro proporciona, a população tem substituído gradativamente o automóvel particular pelos carros de aluguel, o que explica a utilização de úberes e táxis.
- A não utilização do carro depende muito de significativas mudanças estruturais que possibilitem a ampliação de transportes públicos e a adaptação das vias para a receber os tipos alternativos de meios de transporte, como a construção de ciclovias.
- Por vezes, a própria população rejeita as maneiras alternativas, como foi o caso de São Paulo, em que parte significativa da população não acolheu a criação de ciclovias pela prefeitura, ideia praticamente abandonada em gestão posterior.
“O carro seria o novo cigarro?” Em termos.
- Os carros tradicionais, movidos a combustíveis fósseis, poderiam ser desestimulados se houvesse robustos incentivos aos elétricos: menos poluentes, contribuiriam no combate às mudanças climáticas, em linha com o acordo de Paris.
- O automóvel seria visto, sim, como o novo cigarro se houvesse incentivo à compra de carros menores, capazes de transportar poucas pessoas, uma vez que a média de ocupação é de dois indivíduos – em veículos que transportam até cinco passageiros.
- O carro teria a mesma percepção negativa do cigarro se sua utilização fosse menos frequente, devido ao uso mais massivo de transportes públicos ou alternativos no dia a dia.
- O cigarro emprestaria sua imagem negativa aos carros se o poder público incentivasse caronas e programas de escalonamento de horários de trabalho, a fim de proporcionar maior mobilidade e redução de veículos em trânsito.