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Leia o ensaio de Eduardo Giannetti para responder à questão.

A maçã da consciência de si. — O labrador dourado saltando com a criança na grama; o balé acrobático do sagui; a liberdade alada da arara-azul cortando o céu sem nuvens — quem nunca sentiu inveja dos animais que não sabem para que vivem nem sabem que não o sabem? Inveja dos seres que não sentem continuamente a falta do que não existe; que não se exaurem e gemem sobre a sua condição; que não se deitam insones e choram pelos seus desacertos; que não se perdem nos labirintos da culpa e do desejo; que não castigam seus corpos nem negam os seus desejos; que não matam os seus semelhantes movidos por miragens; que não se deixam enlouquecer pela mania de possuir coisas? O ônus da vida consciente de si desperta no animal humano a nostalgia do simples existir: o desejo intermitente de retornar a uma condição anterior à conquista da consciência. — A empresa, contudo, padece de uma contradição fatal. A intenção de se livrar da autoconsciência visando a completa imersão no fluxo espontâneo e irrefletido da vida pressupõe uma aguda consciência de si por parte de quem a alimenta. Ela é como o fruto tardio sonhando em retornar à semente da qual veio ao galho. [...] O desejo de saltar para aquém do cárcere do pensar se pode compreender — e até cultivar — em certa medida, mas o lado de fora não há. A consciência é irreparável; dela, como do tempo, ninguém torna atrás ou se desfaz. Desmorder a maçã não existe como opção.

(Trópicos utópicos, 2016.)



a) No ensaio, o que o autor entende por “simples existir”?

b) Considere os seguintes trechos de poemas de Fernando Pessoa:

1. De resto, nada em mim é certo e está
De acordo comigo próprio. As horas belas
São as dos outros ou as que não há.

2. O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.

3. O meu misticismo é não querer saber.
É viver e não pensar nisso.
Não sei o que é a Natureza: canto-a.

4. Venho de longe e trago no perfil,
Em forma nevoenta e afastada,
O perfil de outro ser que desagrada
Ao meu atual recorte humano e vil.

Em quais trechos se observa “a intenção de se livrar da autoconsciência visando a completa imersão no fluxo espontâneo e irrefletido da vida”? Justifique sua resposta.

a) O “simples existir” corresponde a um período em que o ser humano vivia uma “condição anterior à conquista da consciência”. Pode-se associar esse período a um estado natural, de integração à natureza, de usufruto puro e simples da existência, estado este próximo daquele experimentado por animais como o “labrador dourado”, o “sagui” e a “arara-azul”. O texto sugere que o momento de aquisição da consciência corresponde ao gesto de Adão no Paraíso bíblico, ao tomar a maçã nas mãos – e, ao mesmo tempo, “consciência de si”. Assim, de fruto proibido, a maçã se transforma, no texto, em “fruto tardio”, já que esse gesto é incontornável e “irreparável”, na medida em que o homem não pode voltar atrás. Ao adquirir “consciência de si”, torna-se escravo dela para sempre, submetendo-se a perguntas constantes a respeito da própria existência (diferente dos animais “que não sabem para que vivem nem sabem que não o sabem”), e arcando com os efeitos da exaustão, da dor, da insônia, do arrependimento, da culpa, do desejo, da autodestruição e da ambição.

b) A postura de liberação da “autoconsciência” e de entrega à “imersão no fluxo espontâneo e irrefletido da vida” corresponde mais diretamente aos trechos 2 e 3, na medida em que, em ambos, o enunciador rejeita uma atitude racionalista e reflexiva, típica da autoconsciência, optando por uma relação sensorial com o mundo, própria daquela imersão. Nessa relação, o pensamento perde sua primazia (“Saber ver sem estar a pensar” – trecho 2) e a simples fruição da existência aparece em toda a sua plenitude, permitindo ao eu lírico “viver e não pensar nisso” (trecho 3), condição que parece encontrar eco na afirmação de Eduardo Giannetti, de acordo com a qual o ser humano inveja os “animais que não sabem para que vivem nem sabem que não o sabem”. Entre os heterônimos de Fernando Pessoa, o que mais se aproxima da expressão dessa “imersão no fluxo espontâneo e irrefletido da vida” é Alberto Caeiro, autor dos dois textos indicados, ambos retirados da obra O guardador de rebanhos: poema XXIV (trecho 2) e XXX (trecho 3). Os outros dois textos transcritos no enunciado foram retirados de “A praça da Figueira de manhã” (trecho 1), poema de autoria de Álvaro de Campos (outro heterônimo de Pessoa) e “Passos da Cruz – VI” (trecho 4), que Pessoa assinou com seu próprio nome.