Para responder à questão, leia o poema “O sobrevivente”, extraído do livro Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1930.
O sobrevivente
Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema — uma linha que seja — de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.
Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.
Um sábio declarou a O Jornal que ainda
falta muito para atingirmos um nível razo-
ável de cultura. Mas até lá, felizmente,
estarei morto.
Os homens não melhoraram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heroicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.
(Desconfio que escrevi um poema.)
(Poesia 1930-1962, 2012.)
a) Qual a opinião do eu lírico sobre a “evolução da humanidade”? Justifique sua resposta com base no texto.
b) É possível que o eu lírico, no verso “O último trovador morreu em 1914.”, tenha feito alusão a um importante evento histórico. De que evento se trata e qual é sua relação com o tema geral do poema?
a) O eu lírico apresenta uma visão desencantada e pessimista da evolução humana. Um dos fatores dessa evolução, o desenvolvimento tecnológico, recebe tratamento irônico: conforto se transforma em desperdício (“máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples”) e comodidade vira acomodação (“Se quer fumar charuto aperte um botão / Paletós abotoam-se por eletricidade”); o homem perde o domínio pleno de seus atributos físicos (“Não precisa estômago para digestão”), e até mesmo o contato amoroso perde a razão de ser (“Amor se faz pelo sem-fio”), o que, no limite, pode resultar na perda da própria condição humana. Na penúltima estrofe, tem-se o julgamento definitivo e sintético dessa suposta evolução: “Os homens não melhoraram” – o que equivale a dizer que não houve evolução de fato.
b) O evento histórico a que o eu lírico faz referência é o início da Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918), que envolveu boa parte da Europa. Até o momento de composição do poema (publicado em 1930, portanto, antes da Segunda Guerra Mundial), esse conflito era um dos exemplos mais contundentes da capacidade humana de autodestruição, o que é coerente com o pessimismo que domina o poema.