Você é um(a) estudante do Ensino Médio na rede pública estadual e soube de um acontecimento revoltante na sua escola: sua professora de Filosofia recebeu ofensas e ameaças anônimas por suposta tentativa de doutrinação política, ao ter iniciado o curso sobre as origens da Cidadania e dos Direitos Humanos modernos com o texto a seguir:
Teócrito e o pensamento
A ninguém, nem aos deuses nem aos demônios, nem às tiranias da terra nem às tiranias do céu, foi dado o poder de impedir aos homens o exercício daquele que é o primeiro e o maior de seus atributos: o exercício do pensamento.
Podem amarrar as mãos de um homem, impedindo-lhe o gesto. Podem atar-lhe os pés, impedindo-lhe o andar. Podem vazar-lhe os olhos, impedindo a vista. Podem cortar-lhe a língua, impedindo a fala. O direito de pensar, o poder de pensar, porém, estão acima de todas as violências e de todas as repressões, que nada podem contra seu exercício. (...) Parece claro que não há abuso mais abominável que o de tentar impor limitações ao pensamento de qualquer pessoa.
Pretender suprimir o pensamento de quem quer que seja é o maior dos crimes. Pois não é apenas um crime contra uma pessoa, mas contra a própria espécie humana, uma vez que o pensamento é o atributo que distingue o ser humano dos demais seres criados sobre a face da terra. (...)
Na vida na cidade, se um homem neutraliza dentro de si o direito de pensar, a cidade pode ser tomada e dominada pela ferocidade de um tirano, cujo despotismo levará o povo à morte pela fome, pela crueldade ou por outras formas de injustiça e prepotência. E se não o povo todo, pelo menos uma parte do povo, certamente, será arrastada à opressão, à tortura, ao cárcere ou a qualquer outra forma de perdição. Os tiranos não gostam que as pessoas pensem. (Teócrito de Corinto, filósofo grego, século II d.C.)
A direção da escola ainda não se manifestou publicamente sobre o episódio. Indignado(a) com a tentativa de censura que a professora sofreu por propor aos alunos reflexões fundamentais à formação cidadã, você decidiu escrever o texto de um abaixo-assinado encaminhado à direção da escola, em nome dos estudantes, no qual deve: a) reivindicar que a escola se posicione publicamente em defesa da professora; b) reivindicar a manutenção de aulas de Filosofia que tematizem os Direitos Humanos; e c) justificar suas reivindicações. Para tanto, você deve levar em conta tanto o texto acima quanto os excertos abaixo.
1.
A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
(Declaração Universal dos Direitos Humanos, Artigo XXVI, item 2, 1948.)
2.
3.
No que toca aos direitos humanos, a filósofa Hannah Arendt identificou na ruptura trazida pela experiência totalitária do nazismo e do stalinismo a inauguração do tudo é possível, que levou pessoas a serem tratadas como supérfluas e descartáveis. Tal fato contrariou os valores consagrados da Justiça e do Direito, voltados a evitar a punição desproporcional e a distribuição não equitativa de bens e situações. Arendt propõe assegurar um mundo comum, marcado pela pluralidade e pela diversidade, o qual, através do exercício da liberdade, impediria o ressurgimento de um novo estado totalitário de natureza. No mundo contemporâneo, continuam a persistir situações sociais, políticas e econômicas que, mesmo depois do término dos regimes totalitários, contribuem para tornar os homens supérfluos e sem lugar num mundo comum, como a ubiquidade da pobreza e da miséria, a ameaça do holocausto nuclear, a irrupção da violência, os surtos terroristas, a limpeza étnica, os fundamentalismos excludentes e intolerantes.
(Adaptado de Celso Lafer, A reconstrução dos direitos humanos: a contribuição de Hannah Arendt. Estudos Avançados, v. 11, n. 30, São Paulo, p. 55-65, maio/ago. 1997.)
4.
O bicho está pegando na educação. Fico pensando em que mundo vivem os que acham que as escolas brasileiras sofrem de “contaminação político-ideológica” comandada por “um exército organizado de militantes travestidos de professores”. É uma baita contradição para quem diz defender a “pluralidade”, e é o caminho oposto dos países de alto desempenho em educação: Estados Unidos (em que alguns Estados oferecem educação sexual desde o século XIX), Nova Zelândia, Suécia, Finlândia e França. No Brasil, querem interditar o debate. Mesma coisa com os estudos indígenas e africanos, classificados aqui como porta de entrada para favorecer “movimentos sociais”. Já na Noruega, o currículo é generoso com o povo sami, habitantes originais do norte da Escandinávia. “Doutrinação”, por lá, chama-se respeito à diversidade e às raízes da história do país. Para piorar, o principal evangelista dessa “Bíblia do Mal” seria Paulo Freire. Justo ele, pacifista convicto e obcecado pela ideia de que as pessoas deveriam pensar livremente. Presos na cortina de fumaça da suposta doutrinação, empobrecemos um pouco mais o debate sobre educação.
(Adaptado de Blog do Sakamoto. Disponível em https://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br. Acessado em 05/07/2018.)
Nesta edição de 2019, a Unicamp, coerente com as orientações estabelecidas em seu manual do candidato e com o trabalho proposto nos últimos anos, solicitou a elaboração de duas redações de gêneros distintos, bastante comuns no universo escolar e social: um abaixo-assinado e uma postagem nas mídias sociais.
PROPOSTA 1
Na primeira delas, as instruções da banca eram a de que o candidato assumisse, na interlocução, o papel de um estudante do Ensino Médio de uma escola pública que tinha como propósito principal elaborar o texto de abertura de um abaixo-assinado pelos alunos a ser entregue à direção da escola. O motivador da produção de tal texto foi um acontecimento qualificado como “revoltante”: a professora de Filosofia da instituição fora ofendida e ameaçada anonimamente, acusada de ter promovido uma “doutrinação ideológica” ao ministrar seu curso sobre as origens da Cidadania e dos Direitos Humanos modernos.
Para cumprir tal proposta com eficiência, a primeira tarefa era solicitar, em seu texto, que a escola apoiasse publicamente a professora, considerando que a instituição ainda não havia se posicionado sobre o caso. O texto deveria, ainda, reivindicar que as aulas de Filosofia – nas quais os conceitos relativos aos Direitos Humanos eram trabalhados – fossem mantidas. Todas as questões anteriormente expostas deveriam ser justificadas em seu texto, considerando as informações apresentadas nos textos motivadores selecionados pela banca.
O primeiro texto é um trecho da Declaração Universal dos Direitos Humanos, cuja principal informação era a de que a “instrução” de um indivíduo deverá ser pautada de maneira que “o respeito”, “a compreensão”, “a tolerância” e “a manutenção da paz” sejam assegurados.
No segundo texto, Armandinho, personagem principal das tirinha do brasileiro Alexandre Beck, questiona diretamente a fama de “perigosos” atribuída aos professores. A resposta que recebe é que algumas pessoas assim os consideram porque tais profissionais ensinam o povo a pensar. O exercício da análise crítica do pensamento é fator de perigo, segundo o texto.
O terceiro texto, do ex-ministro das relações exteriores Celso Lafer, estudioso de Hannah Arendt, destaca que, segundo a autora, o totalitarismo, representado pelo nazismo e o stalinismo, instaurou uma ruptura dos valores da Justiça e do Direito – os quais buscavam a equidade e a proteção dos direitos – e estas foram substituídas por uma visão que valida a ideia de que as pessoas são “supérfluas”. A autora dizia que a extinção dos regimes autoritários somente se daria com a criação de um mundo em que predominassem a pluralidade, a diversidade e o exercício da liberdade. O mundo contemporâneo, segundo ela, ainda conserva traços desses regimes, como o caráter descartável das relações, as violências de todas as espécies – sociais, políticas e econômicas – como o terrorismo, as ameaças nucleares, o fundamentalismo, a intolerância, dentre outras.
O texto 4, um trecho de um texto publicado pelo jornalista Leonardo Sakamoto em seu blog, questiona a visão daqueles que consideram que a escola brasileira está dominada por professores (“militantes travestidos de professores”) que promovem uma doutrinação política. Questiona ainda a afirmação de que a “pluralidade” impede o alto desempenho em educação: o que no Brasil é classificado como “doutrinação”, nos países de alta qualidade é respeito à diversidade e às raízes da história. Para confirmar sua tese, Sakamoto cita a educação sexual dada nos Estados Unidos desde o século XIX; o estudo sobre povos originais do norte da Escandinávia, na Noruega. Destaca ainda o fato de os estudos de um dos maiores nomes da educação no Brasil, um grande pacifista, Paulo Freire, ser o principal alvo desse questionamento (o “evangelista desta Bíblia do Mal”).
Com base nessa leitura, o candidato poderia justificar porque considera inadequada a acusação sofrida pela professora. Tomando por base os textos da coletânea, o que a profissional fez em suas aulas de Cidadania e Direitos Humanos modernos foi dar subsídios para que os alunos desenvolvessem o senso crítico, o que o grupo de alunos considera essencial para uma boa formação intelectual.