Leia os textos para fazer sua redação.

O progresso, longe de consistir em mudança, depende da capacidade de retenção. Quando a mudança é absoluta, não permanece coisa alguma a ser melhorada e nenhuma direção é estabelecida para um possível aperfeiçoamento; e quando a experiência não é retida, a infância é perpétua.

George Santayana, A vida da razão, 1905, Vol. I, Cap. XII. Adaptado.

O Historiador

Veio para ressuscitar o tempo
e escalpelar os mortos,
as condecorações, as liturgias, as espadas,
o espectro das fazendas submergidas,
o muro de pedra entre membros da família,
o ardido queixume das solteironas,
os negócios de trapaça, as ilusões jamais confirmadas
nem desfeitas.
Veio para contar
o que não faz jus a ser glorificado
e se deposita, grânulo,
no poço vazio da memória.
É importuno,
sabe-se importuno e insiste,
rancoroso, fiel.

Carlos Drummond de Andrade, A paixão medida, 1981.

Flávio Cerqueira, Amnésia, 2015


Essa escultura de um
garoto negro foi esculpida
no tamanho real de uma
criança, com seus cabelos
crespos, seu nariz largo,
sua boca marcada. A
criança segura uma lata
por sobre sua cabeça, de
onde escorre uma tinta
branca sobre seu corpo
feito de bronze

Nexo Jornal, 13/07/2018.

A minha vontade, com a raiva que todos estamos sentindo, é deixar aquela ruína [o Museu Nacional depois do incêndio] como memento mori, como memória dos mortos, das coisas mortas, dos povos mortos, dos arquivos mortos, destruídos nesse incêndio. Eu não construiria nada naquele lugar. E, sobretudo, não tentaria esconder, apagar esse evento, fingindo que nada aconteceu e tentando colocar ali um prédio moderno, um museu digital, um museu da Internet – não duvido nada que surjam com essa ideia. Gostaria que aquilo permanecesse em cinzas, em ruínas, apenas com a fachada de pé, para que todos vissem e se lembrassem. Um memorial.

Eduardo Viveiros de Castro, Público.pt, 04/09/2018.

Articular historicamente o passado não significa conhecêlo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriarse de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.

Walter Benjamin, Sobre o conceito de história,1940.

Considerando as ideias apresentadas nos textos e também outras informações que julgar pertinentes, redija uma dissertação em prosa, na qual você exponha seu ponto de vista sobre o tema: De que maneira o passado contribui para a compreensão do presente?

A dissertação exigida pela Fuvest neste vestibular de 2019 reforçou a tradição ao propor um tema de cunho universal, de caráter filosófico, exposto por meio de uma pergunta. A interrogação delimitava o enfoque, funcionando como recorte temático: “De que maneira o passado contribui para a compreensão do presente?”.
Trata-se, sem dúvida, de um tema de grande relevância e atualidade, que deve fazer parte do universo de reflexão de qualquer aluno concluinte do Ensino Médio.  Sob esse aspecto, a proposta não provoca desconforto, pois não exige familiaridade com nenhum conhecimento específico.
Houve, entretanto, algum grau de inovação em relação aos anos anteriores, já que a discussão não envolveu se o passado contribui ou não com a compreensão do presente, mas sim de que maneiras isso se dá.
O desafio, portanto, foi desenvolver um raciocínio que fosse além do senso comum, explorando seja nuances sugeridas pelos textos da coletânea, seja dados do repertório pessoal do candidato.
A competência de leitor, assim, foi bastante valorizada. A coletânea trazia textos de razoável complexidade, de gêneros diversos, e oferecia interessantes perspectivas de desenvolvimento.
O primeiro texto, de George Santayana, sugere que a memória, por ele designada por meio do termo “retenção”, é essencial para que se possa conceber alguma orientação para o progresso. A ausência de memória, nos termos do autor, restringiria a humanidade a um estado de “infância perpétua”.
No poema de Drummond, o papel do historiador é valorizado. Por ser aquele que “ressuscita o tempo”, resgata do “poço vazio da memória” aspectos e eventos do passado que talvez não parecesse conveniente retomar.
A obra “Amnésia”, de Flávio Cerqueira, e a breve resenha que a acompanha, do jornal Nexo, figurativiza os malefícios decorrentes do esquecimento do passado histórico, abordando a questão da escravidão, do racismo e as iniciativas de embranquecimento da população, que marcaram tão fortemente a história do Brasil.
O texto de Eduardo Viveiros de Castro, ao propor que as ruínas do Museu Nacional, destruído por um incêndio, sejam preservadas como um memorial, mais uma vez reitera a importância da documentação histórica e se opõe ao esquecimento, ao mesmo tempo que demonstra sua revolta contra o desastroso acontecimento.
Por fim, Walter Benjamin adverte para o perigo de conceber a história como o passado “de fato”, indicando que, ao contrário, a memória histórica se constrói por meio da apropriação e da articulação de reminiscências.
Para incrementar a criticidade de seu texto, seria desejável que o candidato fizesse uma ressalva apontando que, apesar de sua importância para uma compreensão mais madura e aprofundada do presente, o passado, a história e a memória não têm sido suficientemente considerados.
A própria coletânea sugere essa ressalva, no texto de Drummond, que destaca o quanto o historiador pode importunar, no depoimento de Viveiros de Castro, que faz referência ao descaso que culminou com o incêndio do Museu Nacional ou na obra de Flávio Cerqueira, que denuncia o quão superficial é o pretenso embranquecimento e o esquecimento da tensão racial.
Não faltam exemplos no mundo contemporâneo, seja no Brasil, seja no mundo, para ilustrar esse problema. O ressurgimento de movimentos xenófobos, antissemitas e racistas e o crescimento da intolerância podem ser citados para reforçar os perigos resultantes da desvalorização do passado.