Leia os textos.
– Eu acho que nós, bois, – Dançador diz, com baba – assim como os cachorros, as pedras, as árvores, somos pessoas soltas, com beiradas, começo e fim. O homem, não: o homem pode se ajuntar com as coisas, se encostar nelas, crescer, mudar de forma e de jeito… O homem tem partes mágicas… São as mãos… Eu sei...
João Guimarães Rosa, “Conversa de bois”. Sagarana.
Um boi vê os homens
Tão delicados (mais que um arbusto) e correm
e correm de um para o outro lado, sempre esquecidos
de alguma coisa. Certamente faltalhes
não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres
e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves,
até sinistros. Coitados, dir-se-ia não escutam
nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o que é visível
e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes
e no rasto da tristeza chegam à crueldade.
(...)
Carlos Drummond de Andrade, “Um boi vê os homens”.
Claro enigma.
a) Em ambos os textos, o assombro de quem vê decorre das avaliações contrastantes sobre quem é visto. Justifique essa afirmação com base em cada um dos textos.
b) O conto de Rosa e o poema de Drummond valem-se de uma mesma figura de linguagem. Explicite essa figura e justifique sua resposta.
a) Em ambos os fragmentos, bois veem e homens são vistos. É do contraste percebido entre essas duas naturezas que decorre certo assombro por parte dos animais, ao observarem os humanos.
No excerto do conto “Conversa de bois” a diferença se dá pelo fato de os bois se considerarem finitos: “com beiradas, começo e fim”; enquanto que, segundo a visão bovina, os homens têm o poder de se estender e se transformar – “crescer, mudar de forma e de jeito” – com a ajuda de suas “partes mágicas”, as mãos.
No fragmento do poema “Um boi vê os homens”, os bois consideram os seres humanos delicados, apressados e pouco conectados com a natureza: “não escutam / nem o canto do ar nem os segredos do feno”, diferentemente dos animais, que julgam “enxergar o que é visível / e comum a cada um de nós”, o que pode ser compreendido como um aspecto de integração à natureza.
b) A figura de linguagem utilizada nos dois fragmentos é a personificação ou prosopopeia, por meio da qual se atribuem características humanas aos animais, como refletir e falar, por exemplo. No fragmento de Guimarães Rosa, explicita-se a figura em “Dançador diz” e “somos pessoas soltas”; já no excerto de Carlos Drummond de Andrade, a personificação fica clara pelo fato de o boi ser o próprio enunciador do texto.