Texto 1

Texto 2

Texto 3

Ao shopping center

Pelos teus círculos
vagamos sem rumo
nós almas penadas
do mundo do consumo.

De elevador ao céu
pela escada ao inferno:
os extremos se tocam
no castigo eterno.

Cada loja é um novo
prego em nossa cruz.
Por mais que compremos
estamos sempre nus

nós que por teus círculos
vagamos sem perdão
à espera (até quando?)
da Grande Liquidação.

(José Paulo Paes. Prosas seguidas de Odes mínimas, 1992.)

Texto 4

Nós somos consumidores agora, consumidores em primeiro lugar e acima de tudo. Para todas as dificuldades com que nos deparamos no caminho trilhado para nos afastar dos problemas e nos aproximar da satisfação, nós buscamos as soluções nas lojas. Do berço ao túmulo, somos educados e treinados a tratar as lojas como farmácias repletas de remédios para curar ou pelo menos mitigar todas as doenças e aflições de nossas vidas particulares e de nossas vidas em comum. Comprar por impulso e se livrar de bens que já não são atraentes, substituindo-os por outros mais vistosos, são nossas emoções mais estimulantes. Completude de consumidor significa completude na vida.

(Zygmunt Bauman. A riqueza de poucos beneficia todos nós?, 2015. Adaptado.)

Com base nos textos apresentados e em seus próprios conhecimentos, escreva uma dissertação, empregando a norma- -padrão da língua portuguesa, sobre o tema:

Compro, logo existo?

A prova de redação da UNESP de 2019, seguindo a tradição de anos anteriores, ofereceu para análise um tema concreto e atual, ancorado na seguinte pergunta: “Compro, logo existo?”, uma evidente paródia de “Penso, logo existo”, do filósofo René Descartes. A coletânea, formada por textos de diferentes naturezas – charge, tira cômica, poesia e texto referencial – oferece subsídios para reflexões que levam a uma análise bastante completa desse tema que está constantemente em discussão.

Análise da proposta

No texto 1, a charge do argentino Quino leva à reflexão a respeito da relação direta entre o “ter” e o “ser”. A personagem reproduz, no primeiro balão, o conteúdo de sua leitura: “Ninguém vale pelo que tem, mas pelo que é”. Visivelmente indignado – o que foi representado pelo gesto de sua mão direita –, nega, na sequência, a afirmativa: segundo ele, quem não tem, nem sequer existe, ratificando a ideia de que, em um mundo altamente materialista, a existência está atrelada à posse.

No texto 2, a tira de Dahmer, vemos um personagem afirmando a outro, Cláudio, que este apenas pensa em dinheiro e que perdeu a noção da real importância das coisas da vida. Ao colocar em oposição valores materiais e emocionais, Cláudio ressalta a valorização do dinheiro, afirmando tudo o que se pode comprar com ele (iate, carros, motos).

O texto 3, uma poesia de José Paulo Paes, intitulada Ao shopping center, associa imagens que compõem a arquitetura dos prédios  - “teus círculos” (aqui, além da visão concreta, em direta referência à obra de Dante, Divina Comédia) “elevadores”, “loja”-  a impressões de valorizações religiosas, remetendo diretamente à expressão “templo do consumo”  -“almas penadas”, “céu”, “inferno”, “ castigo eterno”. As constantes oposições semânticas reforçam ainda a sensação de insatisfação, de falta de saciedade que rege o consumismo:  por mais que compremos estamos sempre “nus”.

O texto 4, trecho de uma obra do sociólogo Zygmunt Bauman destaca que, no rol de importâncias de nossas vidas, o consumo estaria acima de tudo: o “ter” afasta-nos dos problemas e nos aproxima da felicidade. De acordo com o autor, teríamos sido “treinados” a ter tal comportamento e isso nos leva a crer que a cura de nossos males está no descarte de objetos obsoletos e na aquisição de outros mais atraentes.

Encaminhamentos possíveis

  • Em uma visão bastante pessimista, é possível considerar o triunfo do capitalismo, afirmando que fomos tragados pelo consumismo. Após o advento da Revolução Industrial, os processos de produção e circulação de bens se ampliaram. Como o consumo era “poder” passou a classificar diretamente os homens colocando-os em patamares cada vez mais diferenciados. O “ter” efetivamente se sobrepôs ao “ser” e o homem passa a ter sua existência medida pelos bens que ele possui. Isso leva a sociedade a crer que sua felicidade está cada vez mais associada aos bens de consumo: carros, propriedades, bens materiais seriam a chave de uma vida plena e feliz.

 

  • Em uma visão mais otimista, seria possível considerar que, apesar de valores materiais ganharem muita importância no decorrer da nossa história, há uma crescente desvalorização da compulsão pelo consumo: ideias como sustentabilidade, redução de gastos comporiam a mudança de visão de uma sociedade que começa a perceber que a felicidade está em momentos mais simples e mais humanizados, e que as posses não contribuem para promovê-los. Ao contrário: há prejuízos constantes à saúde financeira e mental dos indivíduos. Há um crescimento da filosofia  da utilização do essencial para viver; as empresas também se contaminaram por essa visão e trabalham com a chamada “economia partilhada” ou consumo colaborativo; nela,  carros, alimentos, serviços, moradia, acesso à informação podem e devem ser compartilhadas pelo grupo. Nessa visão, há a sobreposição desta visão à outra: o que somos não se representa pelo que temos, mas pelos sentimentos que nos comandam, pelas noções de civilidade, altruísmo e empatia, por nossa capacidade de organização em grupos e pela harmonia entre os elementos que os habitam.

 

  • Considerando aspectos positivos e negativos dos elementos apresentados na coletânea, é possível destacar que as mudanças sobre a visão de coletivo levaram à percepção dos efeitos do consumismo sobre o planeta e que essa consciência alterou diretamente o modo de produção. As novas visões,  que levaram a sociedade a ver o desperdício, o desejo desenfreado como um mal, ainda enfrentam grandes desafios ao se deparar com a constante ideia do consumo como o grande responsável pelo giro de capital, a manutenção de empregos o desenvolvimento da tecnologia. É ainda muito difícil mudar os hábitos dos indivíduos que ainda se colocam como espelhos dessa criação da mídia, alimentada pelas redes sociais – viciados e treinados por elas, na concepção de Bauman - : os ricos, famosos e poderosos que a tudo compram e que sempre estão em destaque aparentam uma felicidade que somente pode ser conquistada por meio do poder que o consumo traz.