Sonetilho do falso Fernando Pessoa
Onde nasci, morri.
Onde morri, existo.
E das peles que visto
muitas há que não vi.
Sem mim como sem ti
posso durar. Desisto
de tudo quanto é misto
e que odiei ou senti.
Nem Fausto nem Mefisto,
à deusa que se ri
deste nosso oaristo*,
eis‐me a dizer: assisto
além, nenhum, aqui,
mas não sou eu, nem isto.
Carlos Drummond de Andrade. Claro Enigma.
Ulisses
O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo ‐
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá‐la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
Fernando Pessoa. Mensagem
*conversa íntima entre casais.
Considerando os poemas, assinale a alternativa correta.
Na primeira estrofe do poema “Sonetilho do falso Fernando Pessoa”, o eu poético afirma: “E das peles que visto / muitas há que não vi.” Esses versos deixam claro que a matéria da poesia traz elementos que, muitas vezes, não foram vividos pelo poeta como indivíduo. Mais do que isso, o poema se encerra com o reforço da ideia: “mas não sou eu, nem isto”. Esses versos corroboram a informação de que “a identidade do poeta independe de sua existência biográfica”. No texto de Fernando Pessoa, no qual o tema é a figura de Ulisses, fundador mitológico de Portugal, o mito “Sem existir nos bastou”, o que afirma sua perpetuação a despeito, inclusive, de sua existência. É possível, portanto, identificar a analogia temática entre os textos, a partir da ideia de que a poesia tem a sua essência independentemente das experiências concretas do poeta que a produziu e de que o mito se sustenta para além de sua presença física.