Aconteceu mais de uma vez: ele me abandonou. Como todos os outros. O quinto. A gente já estava junto há mais de um ano. Parecia que dessa vez seria para sempre. Mas não: ele desapareceu de repente, sem deixar rastro. Quando me dei conta, fiquei horas ligando sem parar —mas só chamava, chamava, e ninguém atendia. E então fiz o que precisava ser feito: bloqueei a linha.
A verdade é que nenhum telefone celular me suporta. Já tentei de todas as marcas e operadoras, apenas para descobrir que eles são todos iguais: na primeira oportunidade, dão no pé. Esse último aproveitou que eu estava distraído e não desceu do táxi junto comigo. Ou será que ele já tinha pulado do meu bolso no momento em que eu embarcava no táxi? Tomara que sim. Depois de fazer o que me fez, quero mais é que ele tenha ido parar na sarjeta. [...] Se ainda fossem embora do jeito que chegaram, tudo bem. [...] Mas já sei o que vou fazer. No caminho da loja de celulares, vou passar numa papelaria. Pensando bem, nenhuma das minhas agendinhas de papel jamais me abandonou.
FREIRE. R. Começar de novo. O Estado da S. Paulo. 24 nov. 2006.
Nesse fragmento, a fim de atrair a atenção do leitor e de estabelecer um flo condutor de sentido, o autor utiliza-se de
As alternativas, do modo como foram redigidas, não permitem a indicação precisa e inquestionável do recurso empregado pelo autor para "atrair a atenção do leitor" e "estabelecer um fio condutor de sentido".
A alternativa A está correta ao afirmar que o enunciador se projeta no texto em primeira pessoa do singular, mas não se trata do relato de mais uma desilusão amorosa: o segundo parágrafo explicita que o tema são as frequentes perdas de celulares da cronista.
A alternativa B, para ser considerada verdadeira, precisaria tomar a noção de "ironia" em um sentido menos formal e pouco técnico, como sinônimo de humor.
Em C, deve-se considerar que "frases feitas" são expressões idiomáticas, construções cristalizadas, normalmente de sentido figurado (“pegar o bonde andando” e “tirar o cavalinho da chuva” são exemplos). No texto, expressões como "ele me abandonou" ou "Como todos os outros" são clichês para abordar a desilusão amorosa, mas não “frases feitas”.
A “quebra de expectativa”, tal como se afirma em D, realmente marca o texto: a expectativa de que o tema é a separação de dois amantes é frustrada no segundo parágrafo, quando se releva o real assunto do texto. Entretanto, não é a quebra da expectativa uma estratégia argumentativa para "ocultar informações", pois a quebra ocorre justamente quando o tema da perda dos celulares se revela.
Há verbos conjugados no pretérito, como se afirma em E, mas eles desempenham uma função narrativa no texto, pois são empregados nos trechos em que a narradora recorda dos casos em que perdeu seus aparelhos celulares.