Quebranto

às vezes sou o policial que me suspeito
me peço documentos
e mesmo de posse deles
me prendo e me dou porrada

às vezes sou o porteiro
não me deixando entrar em mim mesmo
a não ser
pela porta de serviço 

[...]

às vezes faço questão de não me ver
e entupido com a visão deles
sinto-me a miséria concebida como um eterno
começo

fecho-me o cerco
sendo o gesto que me nego
a pinga que me bebo e me embebedo
o dedo que me aponto
e denuncio
o ponto em que me entrego. 

às vezes!...

CUTI. Negroesia. Belo Horizonte: Mazza, 2007 (fragmento).

Na literatura de temática negra produzida no Brasil, é recorrente a presença de elementos que traduzem experiências históricas de preconceito e violência. No poema, essa vivência revela que o eu lírico

  • a

    incorpora seletivamente o discurso do seu opressor.

  • b

    submete-se à discriminação como meio de fortalecimento.

  • c

    engaja-se na denúncia do passado de opressão e injustiças. 

  • d

    sofre uma perda de identidade e de noção de pertencimento. 

  • e

    acredita esporadicamente na utopia de uma sociedade igualitária.

A resposta correta é aquela que afirma: “incorpora seletivamente o discurso do seu opressor,” pois, durante o poema ("Quebranto") de Cuti, o eu lírico seleciona situações nas quais se explicitam a opressão e o racismo, por exemplo, na abordagem policial truculenta e no preconceito de ser obrigado a usar a entrada de serviço. Tal processo atua no texto como se o próprio eu lírico pudesse agir, ao mesmo tempo, como opressor e oprimido, num movimento que evidenciaria a crítica.