Dia 20/10
É preciso não beber mais. Não é preciso sentir vontade de beber e não beber: é preciso não sentir vontade de beber. É preciso não dar de comer aos urubus. É preciso fechar para balanço e reabrir. É preciso não dar de comer aos urubus. Nem esperanças aos urubus. É preciso sacudir a poeira. É preciso poder beber sem se oferecer em holocausto. É preciso. É preciso não morrer por enquanto. É preciso sobreviver para verificar. Não pensar mais na solidão de Rogério, e deixá-lo. É preciso não dar de comer aos urubus. É preciso enquanto é tempo não morrer na via pública.
TORQUATO NETO. In: MENDONÇA, J. (Org.) Poesia (im)popular brasileira.
São Bernardo do Campo: Lamparina Luminosa, 2012.
O processo de construção do texto formata uma mensagem por ele dimensionada, uma vez que
DIVERGÊNCIA DE GABARITO
GABARITO OFICIAL: D
RESPOSTA ANGLO: C e D
A alternativa C pode ser considerada correta porque, no plano da forma (referido no enunciado da questão por meio do verbo “formata”), um traço que se destaca é a repetição da expressão "É preciso". Esta anáfora, no plano do conteúdo (referido no enunciado por meio do substantivo “mensagem”), acentua a necessidade de reprimir o impulso poderoso da vontade, do “querer”. A persistência com que o enunciador repete a expressão demonstra toda a carga emotiva que essa atitude implica.
Uma imagem que merece menção é a dos "urubus", relacionados ao sentido de violência e de morte. O enunciador busca reprimir tudo que possa dar azo ao ataque macabro das aves. A dramaticidade se acentua em "É preciso poder beber sem se oferecer em holocausto", que mostra o desejo de embriagar-se, sem se oferecer em sacrifício.
O poema é um exemplo da tópica clássica "In vino veritas" (no vinho, a verdade), que remete à ideia de que uma pessoa sob o efeito do álcool está mais propensa a ser verdadeira, correndo o risco de revelar suas emoções mais contidas.
O gabarito oficial aponta como correta a alternativa D, cujo texto também tem pertinência.
A formatação da mensagem por meio da referida anáfora pode ser, de fato, a consciência da agonia que o enunciador antecipa, caso beba. A "consciência antecipada" está presente na subjetividade implícita do texto. É implícita, porque não há a marca forte da primeira pessoa; mas é subjetividade, porque se trata de um registro de diário, de agenda, com um projeto que o emissor coloca para si mesmo.
Também se pode falar em "agonia antecipada" por causa das referências e imagens agônicas da morte e do holocausto. O emissor traz para o hoje (agenda, a data) sofrimentos futuros.