Leia o texto e atenda ao que se pede.
A MÁQUINA DO MUNDO
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.*
(...)
Carlos Drummond de Andrade, Claro enigma.
*carpirse: lamentarse.
a) O ponto de vista do eu lírico em relação à “máquina do mundo” ilustra as principais características de Claro enigma? Justifique.
b) Transcreva o verso que sintetiza o evento sublime de que trata o texto.
a) Sim. O ponto de vista do eu lírico em relação à “máquina do mundo” está expresso nos dois últimos versos do fragmento, uma vez que o enunciador assume já ter se esquivado de rompê-la e lamenta-se apenas por pensar em fazê-lo. Entende-se, portanto, a postura de desinteresse do eu lírico “incurioso” em relação à tentativa de compreensão e interpretação do mundo que o cerca oferecida pela máquina. Essa postura está relacionada com o momento de maturidade do autor, sugerido por imagens do fragmento como “fecho da tarde” e acompanhado de certo pessimismo, também presente no trecho por meio de “céu de chumbo” e “próprio ser desenganado”.
A postura de desinteresse com relação à “máquina do mundo” ilustra as principais características de Claro Enigma de muitas maneiras diferentes e complementares. No livro, tal postura é recorrente. A primeira palavra do poema “Dissolução”, que abre o livro, por exemplo, é “Escurece”. A última estrofe do mesmo poema afirma: “Imaginação, falsa demente, já te desprezo. E tu, palavra.” Em “Legado”, o eu lírico se mostra desacreditado da força da poesia como veículo de transformação, quando assinala: “Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu”. Por fim, em “Oficina Irritada”, da mesma forma, ele se refere ao próprio trabalho como “um tiro no muro”, portanto sem função ou efeito.
b) O verso que sintetiza o evento sublime de que trata o texto é “a máquina do mundo se entreabriu”. O poema propõe a discussão acerca da possibilidade dessa “total explicação da vida” por meio de um dispositivo externo ao eu lírico, o que, no momento de maturidade vivido pelo sujeito, não lhe interessa.