Considere a seguinte situação: você acorda atrasado para o trabalho e, na pressa, esquece o celular em casa. Só quando engavetado no tráfego ou amassado no metrô você se dá conta. E agora é tarde para voltar. Olhando em volta, você vê pessoas com celular em punho conversando, mandando mensagens, navegando na internet. Aos poucos, você vai sendo possuído por uma sensação de perda, de desconexão. Sem o seu celular, você não é mais você.
A junção do humano com a máquina é conhecida como “transumanismo”. Tema de vários livros e filmes de ficção científica, hoje é um tópico essencial na pesquisa de muitos cientistas e filósofos. A questão que nos interessa aqui é até que ponto essa junção pode ocorrer e o que isso significa para o futuro da nossa espécie.
Será que, ao inventarmos tecnologias que nos permitam ampliar nossas capacidades físicas e mentais, ou mesmo máquinas pensantes, estaremos decretando nosso próprio fim? Será esse nosso destino evolucionário, criar uma nova espécie além do humano?
É bom começar distinguindo tecnologias transumanas daquelas que são apenas corretivas, como óculos ou aparelhos para surdez. Tecnologias corretivas não têm como função ampliar nossa capacidade cognitiva: só regularizam alguma deficiência existente.
A diferença ocorre quando uma tecnologia não apenas corrige uma deficiência como leva seu portador a um novo patamar, além da capacidade normal da espécie humana. Por exemplo, braços robóticos que permitem que uma pessoa levante 300 quilos, ou óculos com lentes que dotam o usuário de visão no infravermelho. No caso de atletas com deficiência física, a questão se torna bem interessante: a partir de que ponto uma prótese como uma perna artificial de fibra de carbono cria condições além da capacidade humana? Nesse caso, será que é justo que esses atletas compitam com humanos sem próteses?
Poderia parecer que esse tipo de hibridização entre tecnologia e biologia é coisa de um futuro distante. Ledo engano. Como no caso do celular, está acontecendo agora. Estamos redefinindo a espécie humana através da interação – na maior parte ainda externa – com tecnologias que ampliam nossa capacidade.
Sem nossos aparelhos digitais – celulares, tabletes, laptops – já não somos os mesmos. Criamos personalidades virtuais, ativas apenas na internet, outros eus que interagem em redes sociais com selfies arranjados para impressionar; criações remotas, onipresentes. Cientistas e engenheiros usam computadores para ampliar sua habilidade cerebral, enfrentando problemas que, há apenas algumas décadas, eram considerados impossíveis. Como resultado, a cada dia surgem questões que antes nem podíamos contemplar.
(Folha de S.Paulo, 01.02.2015. Adaptado.)
a) Para o físico Marcelo Gleiser, o que distingue as tecnologias transumanas daquelas apenas corretivas? Justifique sua resposta.
b) Cite dois termos empregados em sentido figurado no primeiro parágrafo do artigo.
a) O enunciador define as tecnologias transumanas como aquelas capazes de elevar a capacidade cognitiva da espécie humana. As tecnologias corretivas, segundo ele, são as que remediam alguma deficiência – como exemplo, ele cita óculos e aparelhos para surdez.
b) Entre os seguintes, podem ser escolhidos dois termos:
- "engavetado", que está assemelhando a situação de estar em um congestionamento a estar preso em uma gaveta;
- "amassado", que está aproximando o contato entre os passageiros de um metrô lotado ao ato de amassar um objeto;
- "navegando", que é uma expressão não literal já consagrada para acessar a Internet.