Sarapalha

– Ô calorão, Primo!... E que dor de cabeça excomungada!

– É um instantinho e passa... É só ter paciência....

– É... passa... passa... passa... Passam umas mulheres vestidas de cor de água, sem olhos na cara, para não terem de olhar a gente... Só ela é que não passa, Primo Argemiro!... E eu já estou cansado de procurar, no meio das outras... Não vem!... Foi, rio abaixo, com o outro... Foram p’r’os infernos!...

– Não foi, Primo Ribeiro. Não foram pelo rio... Foi trem-de- ferro que levou...

– Não foi no rio, eu sei... No rio ninguém não anda... Só a maleita é quem sobe e desce, olhando seus mosquitinhos e pondo neles a benção... Mas, na estória... Como é mesmo a estória, Primo? Como é?...

– O senhor bem que sabe, Primo... Tem paciência, que não é bom variar...

– Mas, a estória, Primo!... Como é?... Conta outra vez...

O senhor já sabe as palavras todas de cabeça... “Foi o moço-bonito que apareceu, vestido com roupa de dia-de-domingo e com a viola enfeitada de fitas... E chamou a moça p’ra ir se fugir com ele”...

– Espera, Primo, elas estão passando... Vão umas atrás das outras... Cada qual mais bonita... Mas eu não quero, nenhuma!... Quero só ela... Luísa...

– Prima Luísa...

– Espera um pouco, deixa ver se eu vejo... Me ajuda, Primo! Me ajuda a ver...

– Não é nada, Primo Ribeiro... Deixa disso!

– Não é mesmo não...

– Pois então?!

– Conta o resto da estória!...

– ...“Então, a moça, que não sabia que o moço-bonito era o capeta, ajuntou suas roupinhas melhores numa trouxa, e foi com ele na canoa, descendo o rio...

Guimarães Rosa, Sagarana.

No texto de Sarapalha, constitui exemplo de personificação o seguinte trecho:

  • a

    No rio ninguém não anda"

  • b

    só a maleita é quem sobe e desce"

  • c

    O senhor já sabe as palavras todas de cabeça"

  • d

    e com a viola enfeitada de fitas"

  • e

    “ajuntou suas roupinhas melhores numa trouxa"

No fragmento, as formas verbais "sobe" e "desce" pressupõem um sujeito ativo e humanizado, justificando inclusive o uso da forma pronominal "quem". Como tal forma retoma o substantivo "maleita" - que dá nome a uma doença (a malária) -, a enfermidade foi tratada figuradamente como se fosse um ser humano; logo, ocorre a figura conhecida como personificação ou prosopopeia.