Voltada para o encanto da vida livre do pequeno núcleo aberto para o campo, a jovem Helena, familiar a todas as classes sociais daquele âmbito, estava colocada num invejável ponto de observação. (...)
Sem querer forçar um conflito que, a bem dizer, apenas se esboça, podemos atribuir parte desta grande versatilidade psicológica da protagonista aos ecos de uma formação britânica, protestante, liberal, ressoando num ambiente de corte ibérico e católico, mal saído do regime de trabalho escravo. Colorindo a apaixonada esfera de independência da juventude, reveste-se de acentuado sabor sociológico este caso da menina ruiva que, embora inteiramente identificada com o meio de gente morena que é o seu, o único que conhece e ama, não vacila em o criticar com precisão e finura notáveis, se essa lucidez não traduzisse a coexistência íntima de dois mundos culturais divergentes, que se contemplam e se julgam no interior de um eu tornado harmonioso pelo equilíbrio mesmo de suas contradições.
Alexandre Eulálio, “Livro que nasceu clássico”.
In: Helena Morley, Minha vida de menina.
O trecho do romance Minha vida de menina que ilustra de modo mais preciso o que, para o crítico Alexandre Eulálio, representa “a coexistência íntima de dois mundos culturais divergentes” é
Helena Morley, pretendendo ter um vestido novo, decide vender um broche que fora prometido a ela e que ainda estava em posse da mãe. Nota-se, em sua decisão, a coexistência de valores divergentes relativos ao utilitarismo de vender o broche (obtendo, assim, a satisfação imediata de seus desejos) e o incômodo moral que leva a "menina ruiva" a buscar amparo na Virgem Maria.