Em maio deste ano, uma festa do 3º ano do Ensino Médio de uma escola do Rio Grande do Sul propôs aos alunos que se preparavam para o vestibular uma atividade chamada “Se nada der certo”. O objetivo era “trabalhar o cenário de não aprovação no vestibular”, e como “lidar melhor com essa fase”. Os alunos compareceram à festa “fantasiados” de faxineiros, garis, domésticas, agricultores, entre outras profissões consideradas de pessoas “fracassadas”. O evento teve repercussão nacional e acirrou o debate sobre a meritocracia. Para Luis Felipe Miguel, professor de ciência política, “o tom de chacota da festa-recreio era óbvio”, e teria sido mais interessante “discutir como se constrói a hierarquia que define algumas ocupações como subalternas e outras como superiores; discutir como alguns podem desprezar os saberes incorporados nas práticas dessas profissões (subalternas apenas porque contam com quem as faça por eles); discutir como o que realmente ‘deu certo’ para eles foi a loteria do nascimento, que, na nossa sociedade, determina a parte do leão das trajetórias individuais”.

(Adaptado de Fernanda Valente, Dia do ’se nada der certo’ acende debate sobre meritocracia e privilégio.
Carta Capital, 06/06/2017. Disponível em http://justificando.cartacapital.com.br/2017/06/06/dia-do-se-nada-der-
certoacende-debate-sobre-meritocracia-e-privilegio/. Acessado em 08/06/2017.)

As alternativas a seguir reproduzem trechos de uma entrevista do professor Sidney Chalhoub (Unicamp e Harvard) sobre o mito da meritocracia.

(Manuel Alves Filho, A meritocracia é um mito que alimenta as desigualdades, diz Sidney Chalhoub. Jornal da Unicamp, 07/06/2017.)

Assinale aquela que dialoga diretamente com a notícia acima.

  • A

    É preciso promover a inclusão “e fazer com que o conhecimento que essas pessoas trarão à Universidade seja reconhecido e disseminado”. 

  • B

    Com a adesão da Unicamp ao sistema de cotas, um “novo contingente de alunos colocará em cheque vários hábitos da universidade”. 

  • C

    “As melhores universidades do mundo (que servem de referência) adotam a diversidade no ingresso dos estudantes há bastante tempo”. 

  • D

    “O ideal seria que todos aqueles que tivessem condições intelectuais e interesse em entrar na universidade obtivessem uma vaga”.

Com base na premissa de que todo texto dialoga com outro texto do cenário cultural, um texto só não dialoga com o não texto. Ora, nenhuma das alternativas contém um não texto. Isso equivale a dizer que todas as alternativas estão estabelecendo algum tipo de diálogo com o texto-base.

Com base numa outra premissa, também verdadeira, segundo a qual há basicamente dois tipos de relação dialógica entre um texto e outro - uma relação contratual ou uma relação polêmica -, era esperado que a solicitação de análise do diálogo intertextual viesse acompanhada de instrução mais precisa do que aquela informada pelo advérbio "diretamente".

O enunciado da questão não especifica qual das alternativas está em relação contratual. Com base no conhecimento pragmático que se tem sobre questões de múltipla escolha, pode-se presumir que o pressuposto seja apontar a relação contratual.

Portanto, o comando da questão, ao solicitar que seja assinalada a alternativa “que dialoga diretamente com a notícia” reproduzida na prova, não é suficientemente preciso para que o candidato possa chegar a uma resposta unívoca. Essa imprecisão é agravada pela descontextualização dos trechos adaptados da entrevista do professor Sidney Chalhoub que constam das alternativas. A alternativa a, inclusive, contém um pronome anafórico cuja referência não está presente no texto.

Desconsiderando essa imprecisão e supondo que a construção tenha como referência os excluídos da universidade, seria cabível considerar que o trecho da entrevista dialoga com a passagem da reportagem em que são apresentadas as declarações do professor Luis Felipe Miguel.  Ao comentar a ridicularização dos trabalhadores sem formação universitária, ele sustenta que teria sido mais interessante “discutir como alguns podem desprezar os saberes incorporados nas práticas dessas profissões”.  O fragmento apresentado na alternativa, ao reivindicar que o conhecimento dos excluídos passe a ser reconhecido e disseminado, dialoga diretamente com a ideia de que os saberes dos excluídos são desprezados.

Na alternativa b, desconsiderando-se a infração ao sistema ortográfico em vigor (“colocará em cheque”, em vez de xeque), pode-se considerar que a tese defendida por Chalhoub no fragmento, ou seja, de que a inclusão, via sistema de cotas, de um contingente de excluídos exigirá que a universidade questione suas práticas, dialoga diretamente com as passagens da notícia que mencionam o acirramento do debate sobre a meritocracia e com a declaração do entrevistado atribuindo o sucesso no vestibular à “loteria do nascimento”, e não ao mérito individual.

A alternativa c, ao registrar que a seleção privilegiando a diversidade já é adotada nas “melhores universidades do mundo”, dialoga com essas mesmas passagens da notícia e também com a concepção de que os não aprovados no vestibular sejam considerados “pessoas fracassadas”.

A alternativa d, ao apontar que “o ideal seria que todos que tivessem condições e interesses pudessem ser acolhidos pela universidade”, também dialoga com essa crítica à meritocracia.

A análise das alternativas não nos levou a identificar aquela que representaria, inequivocamente, um diálogo direto com a notícia, nem os distratores que invalidariam, sem sombra de dúvida, as demais. Conviria, pois, que a Banca examinadora assumisse o compromisso de esclarecer as distorções responsáveis pelo descarte das alternativas que considera equivocadas.