Legado

Que lembrança darei ao país que me deu
tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?
Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu
minha incerta medalha, e a meu nome se ri.

E mereço esperar mais do que os outros, eu?
Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.
Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,
a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

Não deixarei de mim nenhum canto radioso,
uma voz matinal palpitando na bruma
e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.

De tudo quanto foi meu passo caprichoso
na vida, restará, pois o resto se esfuma,
uma pedra que havia em meio do caminho.

• Esse poema integra a obra Claro Enigma, de Carlos Drummond de Andrade. Da leitura dele, depreende-se que

  • a

    o poeta exalta a força que a poesia tem de tornar perenes as vicissitudes efêmeras da vida. 

  • b

    as rimas, bastante convencionais, dão ao poema um tom passadista que faz dele um texto de dúbia qualidade estética. 

  • c

    o legado a que se refere o texto diz respeito somente à poesia metaforizada como canto radioso. 

  • d

    o poema se organiza em versos alexandrinos, de caráter parnasiano, sem deixar de apresentar a clássica chave de ouro, que confere brilhantismo ao fecho do texto.

Em “Legado”, Drummond faz uso do verso alexandrino e da chave de ouro (fecho de soneto, geralmente de caráter sentencioso ou surpreendente). Convém lembrar, contudo, que é preciso relativizar o “caráter parnasiano” que se possa atribuir ao texto, já que, nele, o poeta se utiliza da forma parnasiana para parodiá-la, e não como forma de resgate ou reafirmação.