Leia o trecho do conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, de Sagarana, de João Guimarães Rosa, para responder ao que se pede.
E aí o povo encheu a rua, à distância, para ver. Porque não havia mais balas, e seu Joãozinho Bem-Bem mais o Homem do Jumento tinham rodado cá para fora da casa, só em sangue e em molambos de roupas pendentes. E eles negaceavam e pulavam, numa dança ligeira, de sorriso na boca e de faca na mão.
— Se entregue, mano velho, que eu não quero lhe matar...
— Joga a faca fora, dá viva a Deus, e corre, seu Joãozinho BemBem...
— Mano velho! Agora é que tu vai dizer: quantos palmos é que tem, do calcanhar ao cotovelo!...
— Se arrepende dos pecados, que senão vai sem contrição, e vai direitinho p’ra o inferno, meu parente seu Joãozinho BemBem!...
— Úi, estou morto...
a) Nesse trecho, em que se narra a luta entre Nhô Augusto e seu Joãozinho Bem-Bem, os combatentes, ao mesmo tempo em que se agridem, dispensam, um ao outro, um tratamento que demonstra estima e consideração. No âmbito dos valores que são postos em jogo no conto, como se explica esse tratamento?
b) No trecho, Nhô Augusto é designado como “o Homem do Jumento”. Considerando-se essa designação no intertexto religioso, muito presente no conto, como se pode interpretá-la? Justifique sua resposta.
a) O conto “A hora e vez de Augusto Matraga” narra a história de um homem violento e prepotente que tem a oportunidade de refazer sua trajetória moral, redimindo-se dos pecados cometidos. Essa oportunidade surge quando ele liberta uma família, ameaçada pelo cangaceiro Joãozinho Bem-Bem. Os dois oponentes se distanciam nos propósitos que regem suas vidas: Augusto, movido pela redenção e pelo bem; e Joãozinho, pelo exercício da maldade e da vingança. Mas ambos se aproximam pelo seguimento a um código de conduta ditado pela honra sertaneja, pautado pelo elogio à valentia e pela eficiência no combate. Essa identidade é que permite que surja entre eles um tratamento cortês e respeitoso, como se observa no trecho.
b) O conto “A hora e vez de Augusto Matraga” pode ser submetido a um número razoável de leituras, entre as quais se pode destacar a interpretação religiosa, de acordo com a qual a trajetória do protagonista se aproxima da paixão cristã, marcada pelo sofrimento e pelo esforço de redenção (no caso do Cristo, da espécie humana; no caso de Augusto, dele próprio). Quando Augusto parte para cumprir seu destino, deixa-se guiar por um jumento, concebido como instrumento cósmico de ordenação do mundo. No trecho transcrito, a designação que lhe é dada pela multidão, “Homem do Jumento”, permite associá-lo à imagem do Cristo em sua entrada em Jerusalém. Assim, Augusto sintetiza a imagem do Salvador, do Redentor – epítetos convencionalmente cristãos.