Leia o excerto do romance A hora da estrela de Clarice Lispector (1925-1977).

Será que eu enriqueceria este relato se usasse alguns difíceis termos técnicos? Mas aí que está: esta história não tem nenhuma técnica, nem estilo, ela é ao deus-dará. Eu que também não mancharia por nada deste mundo com palavras brilhantes e falsas uma vida parca como a da datilógrafa [Macabéa]. Durante o dia eu faço, como todos, gestos despercebidos por mim mesmo. Pois um dos gestos mais despercebidos é esta história de que não tenho culpa e que sai como sair. A datilógrafa vivia numa espécie de atordoado nimbo, entre céu e inferno. Nunca pensara em “eu sou eu”. Acho que julgava não ter direito, ela era um acaso. Um feto jogado na lata de lixo embrulhado em um jornal. Há milhares como ela? Sim, e que são apenas um acaso. Pensando bem: quem não é um acaso na vida? Quanto a mim, só me livro de ser apenas um acaso porque escrevo, o que é um ato que é um fato. É quando entro em contato com forças interiores minhas, encontro através de mim o vosso Deus. Para que escrevo? E eu sei? Sei não. Sim, é verdade, às vezes também penso que eu não sou eu, pareço pertencer a uma galáxia longínqua de tão estranho que sou de mim. Sou eu? Espanto-me com o meu encontro.

(A hora da estrela, 1998.)

Para o narrador, o emprego de “difíceis termos técnicos” seria adequado para narrar a história de Macabéa? Justifique sua resposta. Transcreva a frase que melhor explicita a inconsciência da personagem Macabéa. Justifique sua resposta.

De acordo com o narrador, o emprego de “difíceis termos técnicos” seria inadequado para narrar a história de Macabéa, por se tratar de uma criação que ele qualifica como “ao deus-dará”, isto é, espontânea, não apresentando, portanto, nem “técnica” nem “estilo”. Além disso, uma linguagem rebuscada não combinaria com a vida “parca” da personagem, que tem por ofício ser datilógrafa – não uma produtora, mas uma reprodutora de discursos alheios.

O trecho que explicita de maneira mais marcante a falta de consciência de Macabéa é: “Nunca pensara em ‘eu sou eu’”. Tal frase, que mais tarde ecoará no próprio pensamento do narrador, denota que não há uma reflexão de Macabéa a respeito de suas origens, de sua identidade ou de sua individualidade.