Texto 1

Na história, o voto nulo já foi uma bandeira ideológica. Era uma ideia básica dos anarquistas, um dos movimentos utópicos que nasceram no século XIX e fizeram sucesso no começo do século XX. Para eles, votar nulo era uma condição para manter a própria liberdade, se recusando a entregá-la na mão de um líder. “Não mais partidos, não mais autoridade, liberdade absoluta do homem e do cidadão”, pregava o filósofo francês Pierre-Josef Proudhon. O sonho dos anarquistas era uma sociedade organizada pelas próprias pessoas, sem funcionários, sem autoridades e sem líderes.

Hoje, esse discurso utópico parece estar empoeirado. Mas há quem se pergunte se um pouco da utopia da década de 1930 não serviria como uma opção coerente diante de tantos problemas da democracia. A favor ou contra o voto nulo, todos concordam que o atual sistema político do Brasil tem problemas muito mais profundos que a escolha de um ou outro candidato. Segundo o IBGE, mais de 30% dos brasileiros não sabem quem é o governador de seu estado. Dois em cada 10 brasileiros não conseguem dizer quem é o presidente da República, e só 18% praticaram alguma ação política, como fazer uma reclamação ou preencher um abaixo-assinado.

Para Edson Passetti, pesquisador do Departamento de Política da PUC-SP, votar nulo não serve para eliminar corruptos da política, mas pode funcionar como uma crítica generalizada: “Optar pelo voto nulo é saudável como protesto contra todo um sistema.” Já para Marco Aurélio Mello, presidente do TSE, o voto nulo não seria um ato responsável: “Dar uma de avestruz, enfiando a cabeça na areia e deixar o vendaval passar, é a melhor forma de comprometer negativamente o futuro do país.”

(Liliana Pinheiro. “Adianta votar nulo?”. Superinteressante, setembro de 2006. Adaptado.)

Texto 2​

Qual é, em comparação com outras estratégias de protesto, a eficácia do voto nulo? Em que medida e sob que circunstâncias ele produz realmente o efeito desejado?

Afastemos, desde logo, a suposição de que um alto percentual de votos nulos acarreta a nulidade da própria eleição. Trata-se de uma crença totalmente desprovida de fundamento; a Constituição vigente nada estipula nesse sentido. A questão a considerar é, pois, o objetivo dos proponentes do voto nulo. Protestar contra o quê, exatamente?

O atual estado de coisas é lastimável, mas a contribuição do voto nulo à correção dele é rigorosamente zero. Neste caso, nada há na anulação que se possa chamar de público – ou seja, de político, no melhor sentido da palavra. Nas condições do momento, ele apenas exprime um mal-estar subjetivo, difuso, de caráter individual. Qualquer que seja seu peso nos números finais da eleição, ele será apenas uma soma desses mal-estares e da apatia que deles decorre.

(Bolívar Lamounier. “Voto nulo: como, quando, para quê?”. Folha de S.Paulo, 12.07.2014. Adaptado.)

Texto 3

Não concordo com o sistema de representação política do Brasil. Minha alternativa de protesto é o voto nulo.

Na hora de divulgar os resultados, reais ou de pesquisas, a imprensa costuma somar os votos nulos e brancos. O significado dos dois é diferente. O voto nulo é, em princípio, um protesto, inclusive contra o próprio processo eleitoral. Já o voto branco diz que o eleitor concorda com a decisão da maioria.

Votar nulo não se trata de atacar o governo ou a oposição, mas o sistema político inteiro, dizendo não à promiscuidade partidária que confunde o eleitor com essa miscelânea de acordos nacionais e regionais que querem reduzir a cidadania a uma negociata por horários na TV.

(Hugo Possolo. “Protestar pelo voto nulo”. Folha de S.Paulo, 14.07.2014. Adaptado.)

Com base nos textos apresentados e em seus próprios conhecimentos, escreva uma dissertação, empregando a norma- -padrão da língua portuguesa, sobre o tema:

O voto nulo é um ato político eficaz?

Análise da proposta

Mantendo sua tradição, o exame de redação da Unifesp solicitou a elaboração de uma dissertação sobre um tema de interesse e relevância social. O candidato, neste ano, deveria nortear sua reflexão tomando como base a pergunta: “O voto nulo é um ato político eficaz?”.
O primeiro texto da coletânea que amparava o tema, uma matéria da revista Superinteressante, apresentou diversas visões a respeito do voto nulo, como sua relação intrínseca com o movimento anarquista e estatísticas que evidenciam a imaturidade política de parte da população. O texto também opôs a opinião do pesquisador do Departamento de Política da PUC-SP, Edson Passetti, que reconhece o valor de protesto do voto nulo, à do presidente do TSE, ministro Marco Aurélio Mello, para quem a anulação do voto seria um ato de irresponsabilidade.
O segundo texto, do sociólogo Bolívar Lamounier, ataca explicitamente o voto nulo, combatendo a crença popular segundo a qual muitos votos anulados levariam à nulidade da própria eleição. O cientista político defende que esse tipo de manifestação nas urnas não pode ser considerado um ato público, político, mas apenas a expressão de um mal-estar, de caráter individual.
O último texto da coletânea apresenta argumentos favoráveis à anulação do voto, considerado um ato político de protesto contra diversos males da vida política, como a representatividade, os processos eleitorais, a promiscuidade partidária e os acordos partidários mais interessados na vitória do jogo do que no bem público.


Possibilidades de encaminhamento

A discussão de um tema tão caro à vida social brasileira como este deve partir, como a própria banca instrui, do aproveitamento de ideias apresentadas nos textos motivadores da proposta de redação. Além disso, conhecimentos de fatos da atualidade ou de disciplinas como História, Sociologia e Filosofia poderiam enriquecer o debate e render argumentos mais consistentes e verossímeis. A análise do tema poderia contemplar, entre outros, os seguintes comentários:

Argumentos favoráveis à eficácia política do voto nulo

  • Trata-se de uma manifestação concreta da consciência de um indivíduo que não admite participar do jogo político como se lhe apresenta, nas condições em que se dá. Anular o voto é uma decisão de foro íntimo, que se relaciona diretamente com a noção de respeito à liberdade de opinião.
  • Considerando a diferença de significados entre votos brancos e nulos proposta pelo ator e diretor Hugo Possolo (texto 3), pode-se defender que, enquanto aqueles representam a apatia do cidadão, que prefere seguir a opinião da maioria, estes seriam, sim, atos políticos de protesto, de crítica contra o modelo de representação social.
  • Embora se configure majoritariamente como uma estratégia política individual de protesto contra o sistema político, é preciso considerar o crescimento da quantidade de votos nulos nas últimas eleições: tomados em conjunto, reforça-se a noção de ato de protesto, por exemplo, contra o sistema de representação política, contra o próprio processo eleitoral, contra a promiscuidade partidária, contra a miscelânea de acordos e negociatas que visam mais à conquista do poder do que ao bem público.
  • Diante de um cenário mundial de crise por que passa a democracia e sua intrínseca noção de representação social, o voto nulo pode ser interpretado como a concretização do sentimento de frustração com as instituições de poder e comando social. Sem alternativas para escolher bem, sem confiança nos políticos, sem condições de lutar para alterar profundamente o sistema, o voto nulo surge como sinal de descontentamento.


Argumentos contrários à eficácia política do voto nulo

  • É possível interpretar o voto nulo como uma medida utópica de transformação do sistema político e da sociedade: amparado por uma concepção anacrônica de relação entre sociedade e Estado, sua eficácia é muito reduzida, se se considerar que, medida de caráter fundamentalmente individual, seus efeitos práticos são irrisórios para o robusto sistema eleitoral brasileiro.
  • Apesar de se apresentar como uma medida de protesto contra a deficiência do sistema de representação político, a corrupção dos poderosos ou mesmo contra o sistema político como um todo, há outros problemas mais profundos que não são alcançados pelo voto nulo. Há um enorme déficit de consciência política entre os eleitores e um problemático distanciamento deles em relação a temas da política. O voto nulo não muda essa realidade complexa e fundamental.
  • A anulação do voto pode ser entendida como um ato de omissão diante do futuro do país, porque não é público, não tem dimensão prática inquestionável. Revelaria, segundo essa perspectiva, uma apatia em relação à vida em sociedade como ela está alicerçada no país.
  • A ineficácia do voto nulo pode ser relacionada a uma atitude pouco ou nada cidadã: não se trata de um ato político genuíno porque, nas palavras do sociólogo Bolivar Lamounier, ele apenas “exprime mal-estar subjetivo e difuso e de caráter individual”. Tem seu valor social de sinalização, mas é questionável seu real poder de transformação da realidade política e, por conseguinte, social.