Oficina Irritada

Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.

 

Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

 

Esse meu verbo antipático e impuro
há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de Vênus sob o pedicuro.

 

Ninguém o lembrará: tiro no muro,
cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.

Carlos Drummond de Andrade, Claro enigma.

Considere as seguintes afirmações referentes ao texto:

I Ao adotar a forma tradicional do soneto e veicular conteúdo negativo, o poema expressa o conformismo do poeta em relação à sociedade em que vive.

II O poema é, em boa medida, a realização do projeto poético que nele próprio se encontra formulado.

III A mescla de linguagem elevada, citações da cultura clássica e referências de caráter prosaico e até vulgar configura, no poema, a busca caracteristicamente moderna da dissonância como efeito poético.

Está correto o que se afirma em 

  • a

    II e III, apenas. 

  • b

    I, apenas. 

  • c

    III, apenas. 

  • d

    I e II, apenas. 

  • e

    I, II e III.

Afirmação I: Incorreta. A agressividade dos versos impede que se atribua conformismo ao poeta.

Afirmação II: Correta. O soneto “Oficina irritada” se mostra, de fato, “abafado” (pela expressão de ira e angústia), “difícil de ler” (pelas referências cultas e as imagens um tanto herméticas) e destinado a não despertar “nenhum prazer” (o que se evidencia, formalmente, pela monotonia das rimas em uro e er).

Afirmação III: Correta. A expressão do impasse e da insatisfação existencial (com o mundo e com o próprio indivíduo) forma um dos fundamentos do livro Claro enigma, de que foi extraído o soneto. Em “Oficina irritada”, esse estado de espírito se revela no descompasso entre a utilização de uma forma clássica (o soneto) e a inserção de ruídos linguísticos que destoam do espírito clássico (como o prosaísmo da imagem do “tendão de Vênus sob o pedicuro” ou o uso da expressão vulgar “mijando”).