CAPÍTULO LIII

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Virgília é que já se não lembrava da meia dobra; toda ela estava concentrada em mim, nos meus olhos, na minha vida, no meu pensamento; — era o que dizia, e era verdade.

Há umas plantas que nascem e crescem depressa; outras são tardias e pecas. O nosso amor era daquelas; brotou com tal ímpeto e tanta seiva, que, dentro em pouco, era a mais vasta, folhuda e exuberante criatura dos bosques. Não lhes poderei dizer, ao certo, os dias que durou esse crescimento. Lembra-me, sim, que, em certa noite, abotoou-se a flor, ou o beijo, se assim lhe quiserem chamar, um beijo que ela me deu, trêmula, — coitadinha, — trêmula de medo, porque era ao portão da chácara. Uniu-nos esse beijo único, — breve como a ocasião, ardente como o amor, prólogo de uma vida de delícias, de terrores, de remorsos, de prazeres que rematavam em dor, de aflições que desabrochavam em alegria, — uma hipocrisia paciente e sistemática, único freio de uma paixão sem freio, — vida de agitações, de cóleras, de desesperos e de ciúmes, que uma hora pagava à farta e de sobra; mas outra hora vinha e engolia aquela, como tudo mais, para deixar à tona as agitações e o resto, e o resto do resto, que é o fastio e a saciedade: tal foi o livro daquele prólogo.

Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas.

Considerado no contexto de Memórias póstumas de Brás Cubas, o “livro” dos amores de Brás Cubas e Virgília, apresentado no breve capítulo aqui reproduzido, configura uma

  • a

    demonstração da tese naturalista que postula o fundamento biológico das relações amorosas.

  • b

    versão mais intensa e prolongada da típica sequência de animação e enfado, característica da trajetória de Brás Cubas.

  • c

    incorporação, ao romance realista, dos triângulos amorosos, cuja criação se dera durante o período romântico.

  • d

    manifestação da liberdade que a condição de defunto-autor dava a Brás Cubas, permitindo-lhe tratar de assuntos proibidos em sua época.

  • e

    crítica à devassidão que grassava entre as famílias da elite do Império, em particular, na Corte.

O “livro” dos amores de Brás Cubas e Virgília é marcado pela alternância entre a “paixão sem freio” e “uma hipocrisia paciente e sistemática”. Assim como a relação do casal, a trajetória de Brás Cubas, ao longo do romance, é marcada por momentos de animação, como no episódio citado, em que está sintetizado o adultério, e também por momentos de intenso enfado, como nos que ele manifesta seu desprezo pela existência.