Oficina Irritada

Eu quero compor um soneto duro
como poeta algum ousara escrever.
Eu quero pintar um soneto escuro,
seco, abafado, difícil de ler.

Quero que meu soneto, no futuro,
não desperte em ninguém nenhum prazer.
E que, no seu maligno ar imaturo,
ao mesmo tempo saiba ser, não ser.

Esse meu verbo antipático e impuro
há de pungir, há de fazer sofrer,
tendão de Vênus sob o pedicuro.

Ninguém o lembrará: tiro no muro,
cão mijando no caos, enquanto Arcturo,
claro enigma, se deixa surpreender.

O texto ao lado é de Claro Enigma, obra de Carlos Drummond de Andrade. De sua leitura se pode depreender que

  • a

    é um poema que segue rigorosamente os procedimentos de construção do soneto clássico e tradicional, particularmente quanto à disposição e ao valor das rimas e ao uso da chave de ouro como fecho conclusivo do texto.

  • b

    é um metapoema e revela que o soneto que o autor deseja fazer é o mesmo que o leitor está lendo, como a evidenciar na prática a junção do querer e do fazer.

  • c

    utiliza-se de expressões como “tiro no muro” e “cão mijando no caos”, que, além de provocar mau gosto e o estranhamento do leitor, rigorosamente, nada têm a ver com a proposta de elaboração do poema.

  • d

    faz da repetição anafórica e do paralelismo dos versos, um recurso de composição do poema que o torna enfadonho e antiestético e revela um poeta de produção duvidosa e menor.

O soneto “Oficina Ιrritada” traz, no último verso, a expressão que dá título ao livro de Drummond: “claro enigma”. Essa presença não é casual: assim como acontece com outros poemas do livro, a leitura desse soneto apresenta dificuldades que exigem disposição e concentração do leitor – daí a imagem do “soneto duro” e “escuro”. Convém notar que a presença de apenas duas rimas em todo o soneto – -er e -uro – era incomum entre os sonetos clássicos.