Você pode não acreditar
Você pode não acreditar: mas houve um tempo em que os leiteiros deixavam as garrafinhas de leite do lado de fora das casas, seja ao pé da porta, seja na janela.
A gente ia de uniforme azul e branco para o grupo, de manhãzinha, passava pelas casas e não ocorria que alguém pudesse roubar aquilo.
Você pode não acreditar: mas houve um tempo em que os padeiros deixavam o pão na soleira da porta ou na janela que dava para a rua. A gente passava e via aquilo como uma coisa normal.
Você pode não acreditar: mas houve um tempo em que você saía à noite para namorar e voltava andando pelas ruas da cidade, caminhando displicentemente, sentindo cheiro de jasmim e de alecrim, sem olhar para trás, sem temer as sombras.
Você pode não acreditar: houve um tempo em que as pessoas se visitavam airosamente. Chegavam no meio da tarde ou à noite, contavam casos, tomavam café, falavam da saúde, tricotavam sobre a vida alheia e voltavam de bonde às suas casas.
Você pode não acreditar: mas houve um tempo em que o namorado primeiro ficava andando com a moça numa rua perto da casa dela, depois passava a namorar no portão, depois tinha ingresso na sala da família. Era sinal de que já estava praticamente noivo e seguro.
Houve um tempo em que havia tempo.
Houve um tempo.
SANT’ANNA, A. R. Estado de Minas, 5 maio 2013 (fragmento).
Nessa crônica, a repetição do trecho “Você pode não acreditar: mas houve um tempo em que...” configura-se como uma estratégia argumentativa que visa
A alternativa dada como correta pelo Inep apresenta uma análise correta do texto como um todo, mas que não explica satisfatoriamente repetição, em forma de anáfora, da expressão “Você pode não acreditar: mas houve um tempo em que...”. Ela não é usada para “sensibilizar o leitor sobre como o modo como as pessoas se relacionavam entre si num tempo mais aprazível”, mas sim para sugerir que o que será dito no texto pode parecer não crível à primeira vista. Essa sensibilização não é produzida pela anáfora, mas pelo percurso figurativo do texto.
Na verdade, recorrendo a uma espécie de lítotes – figura de linguagem em que se afirma algo pela negação do seu contrário –, o cronista procura convencer o leitor sobre a veracidade de fatos relativos à vida no passado, como se não pairasse dúvida de que houve um tempo em que as coisas eram como ele descreve. Esse é o primeiro efeito argumentativo dessa repetição.
Gabarito oficial: B
Gabarito Anglo: E