Neste ano, a Unesp solicitou aos candidatos, em sua prova de redação, uma dissertação-argumentativa sobre o tema “Justiça Climática” é uma utopia?. Ainda que essa temática, por um lado, faça referência ao conceito abstrato de “utopia" de Thomas More, geralmente empregado para caracterizar uma situação como ideal ou irrealizável, por outro, ela focaliza problemas concretos relacionados ao meio ambiente. Nesse sentido, a pergunta-tema exige do candidato uma reflexão sobre a viabilidade de um ideal de equidade sócio-climática, que pode ser sustentada com dados numéricos, situações concretas e conceitos de pensadores para que a argumentação resulte sólida e convincente.

Para apoiar a reflexão e delinear o tema, a coletânea contou com quatro textos de gêneros diferentes. O texto 1 é uma charge de título “What is climate justice?” (O que é justiça climática?) e introduz, de forma visual e concisa, o cerne da noção de justiça climática, destacando o quão desproporcionais são os impactos climáticos sobre populações marginalizadas, que contribuem menos para o problema, quando comparados aos efeitos sofridos pelas potências mais ricas do planeta. 

O texto 2 é o artigo 225 da nossa Constituição Federal, o qual estabelece que um meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito de todos os brasileiros, classificando-o como um "bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida". 

O texto 3, de Rogger Barreiros, define a justiça climática como uma abordagem ética e política que reconhece as profundas desigualdades nas responsabilidades e nos impactos da crise climática, uma vez que os grupos sociais mais vulneráveis são os mais afetados pelos seus efeitos, apesar de contribuírem menos com ela. 

Por fim, o texto 4, da Oxfam (confederação global de organizações não governamentais que atuam contra a pobreza e a injustiça), argumenta que as crises climáticas e de desigualdade extrema são intrinsecamente ligadas e mutuamente reforçadoras, beneficiando uma minoria rica em detrimento da maioria global. O texto propõe, então, que os principais responsáveis pela degradação e destruição ambiental, os quais também lucram com ela, sejam responsabilizados e financiem a transição energética global, buscando maior equidade climática.

Encaminhamentos possíveis:

  1. É uma utopia: Embora constitua um nobre ideal de relações sociais e entre sociedade e meio ambiente, a justiça climática, em sua plena realização, parece uma realidade inatingível, dada a complexidade das relações de poder, dos interesses econômicos e da fragmentação política global, tornando-a um objetivo utópico. Nessa perspectiva, algumas reflexões poderiam ser desenvolvidas, tais quais:
  • Natureza sistêmica da desigualdade: a justiça climática enfrenta barreiras intransponíveis, considerando a hegemonia do capitalismo neoliberal, que explora as desigualdades e ignora os apelos por sustentabilidade como formas de potencializar lucros e poder. 
  • Interesses econômicos e políticos: grandes corporações privadas e nações desenvolvidas têm interesses na manutenção do status quo social, energético e produtivo, tornando difícil a implementação de mudanças profundas.
  • Polarizações e interesses difusos: a dificuldade para alcançar consensos sobre temas sociais, econômicos e climáticos, em nível nacional ou internacional, impede que a justiça climática seja concretizada.
  • Apatia e negacionismo: a resistência de parte da população e de líderes políticos em reconhecer a gravidade da crise climática e a urgência de medidas eficazes para sua mitigação dificulta a mobilização por justiça.
  1. Não é uma utopia: A justiça climática não é uma utopia, no sentido de algo irrealizável, mas um objetivo pragmático e absolutamente necessário para enfrentar os desafios sociais e ambientais do século XXI. Apesar das dificuldades, sua concretização, ainda que de forma imperfeita ou parcial, é possível e indispensável para a construção de um futuro equitativo e sustentável. Para desenvolver essa perspectiva, as reflexões a seguir poderiam ser consideradas:
  • Imperativo ético e moral: a desigualdade em relação aos efeitos da crise climática é uma violação de Direitos Humanos e da Constituição brasileira, além de ser um problema moral que exige ação. Sob o ponto de vista da evolução das relações sociais e socioambientais, não se trata de uma escolha, mas de uma diretriz obrigatória.
  • Aumento de mobilizações e de consciência: há um crescimento de movimentos sociais, ONGs (como a Oxfam), ativistas (como Greta Thunberg) e ações de Estados (mesmo pontuais) que pressionam por justiça climática e mostram que governos e a sociedade civil podem ser uma força motriz de mudanças.
  • Consequências da inação: não buscar pela justiça climática certamente agravará a crise humanitária, social, econômica, energética e ambiental, tornando-a uma questão ainda mais vital para a sobrevivência e a estabilidade global no futuro.
  • Marcos conceitual e legal: O conceito de justiça climática já está incorporado na Constituição Federal de 1988, oferecendo diretriz legal para ações da sociedade civil e de governos, em todas as suas esferas, para a mitigação das disparidades. 

Alguns repertórios socioculturais que podem auxiliar na fundamentação das reflexões sobre o tema:

  • Ailton Krenak e a separação entre humanidade e natureza: o filósofo e líder indígena brasileiro denuncia a visão utilitarista da natureza, segundo a qual o progresso econômico e social destrói os ecossistemas. A partir da premissa de que não nos consideramos partes da natureza, cisão resultante de nosso processo de abstração civilizacional, legitimamos ações de exploração predatória da natureza. Nesse contexto, o pensamento de Krenak pode auxiliar a justificar, por exemplo, o caráter utópico da justiça climática, uma vez que a cisão entre a civilização (especialmente urbana) e a natureza compõe uma característica dificilmente reversível, dado o progresso tecnológico.
  • Hans Jonas e o Princípio Responsabilidade: o filósofo alemão defende que as ações humanas contemporâneas devem considerar seus impactos sobre o futuro da vida no planeta, a fim de garantir a perpetuação dela com dignidade. Trata-se, portanto, de responsabilidade intergeracional, haja vista que a crise climática e ambiental do presente pode colocar em risco a qualidade de vida das próximas gerações, ou mesmo sua sobrevivência. Segundo essa lógica, a justiça climática requer decisões políticas e tecnológicas que levem em consideração a equidade de condições de vida para as gerações futuras. 
  • Amartya Sen e as noções de desigualdade e justiça: o economista e filósofo indiano defende que a noção de justiça não deve considerar apenas a ideia de igualdade, ou de mitigação das desigualdades, mas precisa se fundamentar também na garantia de condições reais para uma vida digna em diferentes contextos de existência. No âmbito do tema, isso implica reconhecer que os mais pobres são os mais vulneráveis às adversidades climáticas e, portanto, são necessárias ações diferenciadas para proteger especialmente esses grupos.
  • Carta da Terra e as ideias de sustentabilidade e justiça social: elaborada durante a conferência Rio-92, ela é uma declaração de princípios éticos para a construção de uma sociedade global justa, sustentável e pacífica. Segundo o documento elaborado depois de um longo processo de consultas e diálogos internacionais, a proteção ambiental deve andar junto da erradicação da pobreza e do respeito aos direitos humanos. São 16 princípios que versam sobre proteção do meio ambiente, promoção da justiça social, construção da paz e educação para a sustentabilidade do meio ambiente. A Carta pode fundamentar a opinião de que a justiça climática não é uma utopia, mas uma construção complexa e gradual, haja vista a elaboração de um documento norteador de ações em prol desse tema ainda na década de 90 do século passado. 
  • Desastre ambiental no Rio Grande do Sul: especialistas da Oxfam e do IBGE destacam que as enchentes que castigaram a Região Sul do país em 2024 aprofundaram desigualdades sociais que já existiam antes da catástrofe. Populações em situação de vulnerabilidade social tiveram mais dificuldade para acessar abrigos, água potável e alimentos, depois das cheias, demonstrando que eventos climáticos extremos não acometem as populações da mesma forma. Esse fato contemporâneo reforça a necessidade de justiça climática, por meio de políticas que visem sobretudo aos mais vulneráveis.  
  • Exemplo norte-americano: o Condado de Harris, no Texas, adotou em 2024 um Climate Justice Plan que prevê ações públicas com apoio popular em favor do desenvolvimento de infraestrutura verde, da melhoria da qualidade do ar e da água, priorizando comunidades vulneráveis. O caso americano ilustra a necessidade de articulação do poder público e da comunidade reunidos em torno de objetivos de equidade social e climática claros, acordados e documentados, especialmente em níveis de organização social em que as relações se dão de forma mais próxima, como nos municípios.