Para responder à questão, leia a narrativa “A moça de vestido amarelo”, da escritora Conceição Evaristo. Nascida em Belo Horizonte, MG, Conceição Evaristo teve de conciliar os estudos com o trabalho como empregada doméstica até concluir o Curso Normal, em 1971, já aos 25 anos. Foi agraciada com o Prêmio Jabuti em 2015 pela obra Olhos d’água.
Dóris da Conceição Aparecida, desde o primeiro ano de vida, ao começar a falar, deixou os seus espantados. Abrindo os braços, espichando um dos dedos como se mostrasse alguém ou alguma coisa, balbuciou algo assim: “a-ma-e-lo, a-ma-e-lo”. Crescendo foi e seus dizeres também. Do balbucio “a-ma-e-lo”, a palavra “amarelo” se fez ouvir correta e sempre presente no vocabulário da menina. A cor mais ainda. Era o matiz preferido para colorir seus rabiscos, desde seus desenhos da fase célula até as criações mais completas, como a do corpo humano ou a cópia das paisagens.
Um dia, aos sete anos, acordou sorridente dizendo que havia sonhado com a moça de vestido amarelo. A moça que ela via sempre e que alguns de sua família entendiam como sendo uma amiga imaginária da menina. Só a sua avó sabia muito bem de que moça a Sãozinha estava falando. Espantos tiveram todos, menos a avó.
O sonho acordara Dóris, bem no dia de sua primeira comunhão. Não poderia Dóris ter sonhado outros sonhos? Anjinhos dançando e voando em algum lugar azul-celeste? Não poderia ter sonhado com a hóstia consagrada, a quem devemos tanto respeito? E por que não sonhara com o cálice bento? Buscando se recuperarem do assombro, resolveram crer que nada seria mais católico do que a menina sonhar com a Mãe de Jesus. A moça de vestido amarelo poderia ser a Nossa Senhora dos Católicos, que viera em vigília cuidar do sono e dos sonhos da menina, pois no dia seguinte ela iria receber a comunhão pela primeira vez. O sonho indicava o fervor da menina diante da fé católica. A moça que enfeitava o sonho da menina só podia ser a Santa em suas diversas aparições de ajuda e milagres: Senhora Aparecida, Senhora da Conceição, Senhora do Rosário dos Pretos, Senhora Desatadora dos Nós, Nossa Senhora dos Remédios, a Virgem de Fátima… Mas, entretanto, um detalhe não se ajustava bem. Por que a mudança da cor do manto da santa? Azul e branco eram as cores preferidas da Santa católica… Pelo que se sabe a Senhora Católica nunca havia aparecido de amarelo.
O padre, ao ser informado sobre o sonho da menina, foi lacônico e certeiro em direção à resposta. Com um tom de contrariedade na voz, olhou severo para a vó de Dóris, como se ela tivesse alguma culpa sobre o sonho da menina. E mordendo as palavras respondeu que deixasse estar, cada qual sonha com o que está guardado no inconsciente. E no inconsciente, nem a força do catecismo, da pregação e nem as do castigo apagam tudo.
Dóris estava mais bonita naquela manhã e depois de narrar o sonho caiu em um sono mais profundo do que tinha tido a noite inteira. Só quem conseguiu acordá-la foi a vó, Dona Iduína, tocando algumas vezes na cabeça da menina. Na hora da comunhão, o rosto de Dóris se iluminou. Uma intensa luz amarela brilhava sobre ela. E a menina se revestiu de tamanha graça, que a Senhora lá do altar sorriu. Uma paz, nunca sentida, inundou a igreja inteira. Ruídos de água desenhavam rios caudalosos e mansos a correr pelo corredor central do templo. E a menina, em vez de rezar a Ave-Maria, oração ensaiada por tanto tempo, cantou outro cumprimento. Cantou e dançou como se tocasse suavemente as águas serenas de um rio. Alguns entenderam a nova celebração que ali acontecera. A avó de Dóris sorria feliz. Dóris da Conceição Aparecida cantou para nossa outra Mãe, para a nossa outra Senhora.
(Conceição Evaristo. Histórias de leves enganos e parecenças, 2017.)
O chamado discurso indireto livre é aquele em que a voz do personagem mescla-se à voz do narrador. Em que parágrafo a escritora lança mão reiteradamente do chamado discurso indireto livre? Justifique sua resposta.
“O padre, ao ser informado sobre o sonho da menina, foi lacônico e certeiro em direção à resposta. […] E mordendo as palavras respondeu que deixasse estar, cada qual sonha com o que está guardado no inconsciente.” (4o parágrafo) Em que medida a expressão “mordendo as palavras” reforça a caracterização da resposta do padre como lacônica?
a) Ela lança mão reiteradamente do discurso indireto livre no 3° parágrafo. No 2°, é dito que, no dia da sua comunhão, a menina sonhou com a moça de vestido amarelo, o que deixou espantada a família. O parágrafo seguinte traz uma série de indagações que explicam esse espanto, os parentes estão contrariados por a menina não ter sonhado com algo relacionado à sacralidade daquele dia. O fato de que, mesmo não havendo indicação explícita, é mais coerente atribuir essas falas à família do que ao narrador, caracteriza o discurso indireto livre.
b) O padre não gostou do sonho da menina, mas acha que é inútil tentar se opor a ele, por provir do inconsciente. A afirmação de que ele morde as palavras dá a entender que elas saem a custo e com irritação, daí serem poucas e tornarem a resposta lacônica, ou seja, concisa.